Poty, o artista gráfico

1 de Setembro de 2021
POTY LAZZAROTTO: "Lavadeiras", gravura ponta-seca de 1949, feita exclusivamente para o Clube dos Glifófilos.

A importância de Poty: pela chamada dos artistas jovens sobre as possibilidades da gravura como linguagem independente

 Orlando Dasilva*

A grande dívida da gravura brasileira com Poty se origina no seu sucesso imediato que serviu como uma clarinada troada no momento exato em que os jovens não aceitavam mais a arte convencional que se fazia até então. A gravura com seu rigor técnico tem tendência a frear no artista os voos mais ousados,  por esta razão envolve o gravador com menor lastro de criatividade impedindo-o, para se realizar, a exibir-se em malabarismos técnicos, fabricando superfícies epidérmicas, que nada têm com a criatividade, mas que enchem os olhos dos leigos.

POTY LAZZAROTTO: "Fora de compasso", gravura em metal, ponta-seca, 1942

As primeiras estampas

A estampa de Poty, em 1942, traz um recado, ainda não dito, de um realismo descritivo sem participação, vamos dizer assim à falta de palavra melhor; não fala com verborragia política, retrata o trabalhador, o pobre, vê seus personagens com carinho, fidelidade e respeito, sem piedade piegas.  Representa os bêbados num momento feliz em "Fora de Compasso" (2); “o salão da barbearia"(27) com fregueses esperando a sua vez, lendo ou discutindo para passar o tempo; crianças no "Desvio" (37) do trem vendo o seu carregamento; o "Guarda freios"(42) contra o vento com as mãos nos bolsos, um flagrante delicioso; o "Bonde" (48) apinhado de gente mas o enfoque principal é o lirismo do gato procurando carinho; em "Vagão de trem noturno” (21), o cansaço domina o corpo fatigado - há até uma nota esporádica de humor, com uma senhora dormindo no porta mala, uma nota discreta que, por isso mesmo, não tira o impacto da estampa. Mesmo quando o assunto é trágico "Cão danado" (7) é tratado num claro-escuro vigoroso mas sem lastros de tragédia, é a ação que se mostra em linguagem plástica, sobrepondo-se ao drama. É o primeiro artista jovem, com tendência moderna, a se dedicar somente à gravura em metal, o primeiro a ganhar medalha de ouro com gravura no Salão Nacional de Belas Artes em 1949, o primeiro a receber bolsa de estudos do governo francês para estudar gravura em Paris, isso em 1946; dá os primeiros cursos de gravura em metal em São Paulo (1950), Salvador (1950/1), em Curitiba (1953), onde o atelier de aula recebe o seu nome, e em Recife (1954).

Confronto entre seus preços e de outros artistas

Seus preços iniciais são altos. Para pesarmos o valor à época de sua gravura nada melhor que comparar preços: do catálogo da "Exposição de Arte Moderna", Belo Horizonte, 1944, Poty tem gravuras com os seguintes preços: "Circo” (14) por Cr$ 1.000,00. Trabalhando (20) – Cr$ 1.500,00; "Sapateiro” (12) – Cr$ 1.200,00, "Trabalhadores de rua"(18,19) - Cr$ 1.500,00, "Lavadeiras” - Cr$ 1.000,00. Este mesmo catálogo mostramos os preços de dois mestres da gravura, Livio Abramo, que cota a sua "Serie Operários" entre Cr$ 600,00 e Cr$ 700,00 e Oswaldo Goeldi com as séries "Humilhados e ofendidos” e “Carlitos", todas as estampas ao mesmo preço- 200 cruzeiros. Em catálogo da Galeria Calvino, de janeiro de 1949, seus preços já estão mais de acordo com o mercado mas, mesmo assim, vale uma comparação: suas peças vão de Cr$ 300,00 a Cr$ 730,00 no mesmo catalogo as gravuras de Carlos Oswald variam entre Cr$ 150,00 e Cr$ 400,00 - 0 dinheiro em circulação à época é o cruzeiro velho.

Com vigor é amarrada toda a sua obra

Ao analisar o conjunto da obra gravada de Poty temos que tomar conhecimento, nem que seja numa olhada panorâmica, de seus trabalhos em outras técnicas. É preciso conhecer o artista gravador, desenhista, ilustrador, muralista, decorador, escultor e isso se transforma num desafio. Como conciliar seu trabalho mural, especialmente quando em concreto, com as obras gráficas em metal, madeira ou pedra? Por que a linha decorativa, quase sempre presente em suas xilos, raramente aparece em suas calcogravuras? Na sua xilo muitas vezes encontramos vinculação com o mural, mesmo porque, em inúmeros casos o material usado é o mesmo, a madeira.

Mas há uma linha comum que une toda a sua obra; é o vigor, quer no traço de seus desenhos lançados rápida e nervosamente no papel, quer no corte decisivo e fundo na madeira para a xilo, a talha ou o mural; é a tinta engordurando a pedra nas suas litos e criando contraste marcantes; é o relevo acentuado de seus murais de concreto; é a ferida profunda causada pela ponta seca ou ácido nas gravuras em metal.

Sabendo de sua personalidade só nos é possível compreender o decorativismo de seus murais e xilos, não só através do estudo do material empregado, mas tomando conhecimento também de sua facilidade e habilidade manual, somando ainda a memória visual, que lhe facilita a linha simplificada e corrida. Essa convivência fácil com a técnica, sem necessidade de evidenciá-la, faz com que encontremos Poty em toda a sua obra, mesmo sendo essa expressa com linguagens diversas.

Mesmo constatando isso e não tendo dúvida de sua presença em seu trabalho, ainda entendemos que sua personalidade mais característica mostra-se mais atuante nos seus desenhos e nas gravuras em metal. É aí que ele se expressa sem o véu do agrado, se bem que grande parte de seus desenhos são feitos sob encomenda para capas de livros, ilustrações etc.

Percorrendo seus trabalhos vamos nos deter com um pouco mais de atenção nas gravuras em metal, que proporcionam chão firme para o estudo que ora fazemos. Elas nos facilitam a compreensão das outras obras suas com técnicas diferentes, mostram-nos seu início, com o artista apresentando-se totalmente despido do ensino escolarizante, que por vezes afoga a personalidade pessoal do aluno. A gravura em metal, dentre todos os trabalhos de técnicas diversas que pratica, é a que melhor deixa revelar o desenhista que, por sua vez, é quem melhor divulga o seu "eu". Queremos acentuar aqui - antes de tudo Poty é um desenhista.

Primeiras informações formativas de sua personalidade artística

Para encontrarmos os inícios artísticos de Poty temos de nos reportar a sua infância. Aos 4 anos aprende a ler para decifrar as letras do "Eu sei tudo", que tanto o desafiam; aos cinco, seus olhos saboreiam as estórias em quadrinhos, vibram com seus heróis, Back Rogers, Tarzan, Red Barry, Aninha, Mandrake e tantos outros, então emergentes e com grande aceitação. Para ele não só o enredo tem importância; como boa criança que é, vê com encanto a forma gráfica como estas eram contadas, olha, com seus olhinhos de cinco anos de idade que se iniciavam na análise de forma, o desenho elegante de Geo McManus na criação de Pafúncio comparando-o com a linha fortemente personalizada de Chester Gould ao desenhar Dick Tracy. A motivação que as estorinhas em quadrinhos lhe dão é extravasada sobre as ilustrações dos livros que lhe chegam às mãos; figuras recebem chapéus que não têm, cabeças e pernas novas sobre os já impressos.

Tem o seu primeiro emprego que lhe é pago com sessões de cinema, carregando as latas dos filmes tem direito a assisti-los:  especial atenção recebem os seriados, mas logo sus predileção se volta para os filmes mudos, mais antigos, que já não são exibidos comercialmente. Fazem parte da filmoteca particular do dono do cinema e são projetados para uns poucos, com pequeno projetor e vistos em tela menor, montada atrás da que mostra o filme comercial. Entre outros, vê  fitas com Buster Keaton, Harold Lloyd, Douglas Fairbanks, Mary Pickford, Laurel e Hardy, filmes de Keystone Comedies. O garoto Poty já tem especial atenção para o gesto, o flagrante em movimento. A falta da palavra evidencia a forma. Seus olhos treinam para, no futuro, representar nos seus desenhos a ação por meio da linha estática

Primeiras aventuras. A estória em quadrinhos

Em 1938, já então com 14 anos, o Diário da Tarde de Curitiba publica “Haroldo -0 homem relâmpago. Suas aventuras em 6 capítulos", histórias em quadrinhos de sua autoria. O memo Diário de Tarde, em 1939, cria um “Concurso de legendas”. Condições a que deverá obedecer essa prova a que deverão concorrer os escolares de Curitiba disputando 24 prêmios em dinheiro no valor de 300$000: "Bases para o concurso de legendas para os desenhos animados feitos por Poty.  1 - Só poderão concorrer os alunos de escolas particulares ou públicas. 2- Cada concorrente adquirirá um caderno colegial de 48 ou mais folhas, fazendo constar nele seu nome, idade, colégio ou escola em que estiver matriculado, classe a que pertencer. 3 - O concorrente cortará o desenho de Poty, o colocará numa página de caderno e redigirá para cada quadrinho uma legenda para ir formando uma narrativa de aventuras de gangsters nacionais, com nomes nacionais, lugares nacionais etc, a história deve se passar no Paraná e em linhas gerais se trata de assunto de contrabandistas. 4 - A história que mais se aproximar do texto original da escrita pelo próprio Poty e está arquivada nesta redação receberá o primeiro prêmio...”.  O regulamento estipula ainda que: o texto seja corretamente escrito, que a linguagem seja boa, o entrecho encadeado, 50% do valor do trabalho creditado à redação etc. Dos prêmios fala o parágrafo 9: "Serão distribuídos em cadernetas da Caixa Econômica os seguintes prêmios: 1º prêmio de 100$000; 2º - 50$000; 3º - 30$000... "etc.

A grande viagem, Rio de Janeiro, estudos

1942 o encontra estudando no Rio de Janeiro com bolsa de estado oferecida pelo Governo do Estado do Paraná, sendo interventor à época Manoel Ribas. Poty quer oportunidade maior de estudar arte. Neste mesmo ano matricula-se na Escola Nacional de Belas Artes e no Liceu de Artes e Ofícios Na Escola, Rodolfo Chambelland, seu professor de desenho na aula de modelo vivo, fala-lhe de linha quente e linha fria. No Liceu, a personalidade delicada e sensível de Carlos Oswald  ensina-lhe técnica de gravura em metal e diz com amor de vivências artísticas. Na Escola de Belas Artes, como aluno assistente, estuda ainda anatomia com Alfredo Galvão e pintura com Marques Junior, mas, segundo o seu dizer, só o atraía a forma expressa pelo claro-escuro e linha do desenho.

Mas devemos anotar, que expondo pintura e gravura em 1945, no Salão Nacional de Belas Artes, Poti recebe como prêmio em pintura a medalha de bronze. O Rio de Janeiro lhe fornece e possibilita de ampla convivência artística, Portinari, Percy Deane, Hans Steiner, Percy Lau, Cêurio de Oliveira e muitos outros. Todos os citados fazendo gravura, a maioria a ela se dedicando
inteiramente.

Seu desenho imediatamente se firma e afirma sua personalidade. A marca de Poty é patente logo em suas primeiras gravuras, cito a gravura, pois é por ela que o artista primeiro mostra seu desenho marcadamente pessoal. Da terceira gravura em diante, o desenho ganha estatura artística não encontrada antes em sua obra. Devemos ressaltar que Poty está com 18 anos.

O nome POTY não é rapidamente assimilado; nas primeiras histórias em quadrinhos é grafado com "i" em substituição a “y” na primeira vez que expõe no Salão Nacional de Belas Artes (1942), no catálogo seu nome é Pory, na "Exposição de Arte Moderna "de Belo Horizonte, o Poty está correto mas aparece um Carlos que não existe. Como vemos, o nome tem mais resistência para ser aceito do que a sua obra, logo louvada.

O desenhista ilustrador

Quando vai trabalhar em jornal em 1944 (Folha Carioca, RJ), o desenho já é sólido, de claro-escuro definido, sem titubeios, mas creio que a lida do jornal requisitando desembaraço, convivência gráfica com as letras impressas e captação do sentido plástico do texto, muito contribuiu para que seu dizer em desenho seja tão gráfico e decisivo, possibilitando comunicação instantânea. Trabalhou ainda como desenhista do texto literário, ilustrando Carlos Drummond de Andrade entre outros, da crônica policial, etc. Em 1945 - Diretrizes, RJ; em 1946/8- Joaquim, Curitiba, PR; em 1948/9-0 Jornal, RJ.


POTY LAZZAROTTO: “Guarda-freios”, gravura em metal, ponta-seca, 1944.

Antes de tudo o desenho

O desenho em Poty é a base de toda a sua obra. É a espinha dorsal do gravador, quer seja o calcógrafo, o xilógrafo ou o litógrafo, ele marca sua presença fundamental no muralista, no escultor. Em tudo que sua mão executa sua bússola criadora sempre aponta o desenho. Antes de tudo é um artista que se expressa pelo desenho de forma espontânea, que faz parte de sua vivência física. É dele que parte para a criação de toda a sua obra de diferentes técnicas em que emprega materiais diversos para seu dizer. Artista de retenção visual rápida que guarda em memória privilegiada, habilidade e facilidade manual, desenha como respira, de modo natural, espontâneo, sem apelos ao raciocínio para resolver problemas técnicos ou estéticos O desembaraço do seu desenho permite-lhe realizar escorços em suas figuras sem tirar a naturalidade de seu comportamento corporal. Na "descida da cruz", (50) a figura de Cristo e dos demais que o retiram dela ainda mostram rigidez de forma e movimento, mas quando representa o “guarda freios" (chapa pequena), (113) ou quando retrata, por diversas vezes, os operários, tudo é singelo e sem afetação.

Seu modo de ver e traduzir plasticamente

Seus olhos, ao verem uma cena que o toca plasticamente, funcionam fotograficamente vendo o conjunto e o detalhe de uma só vez. É o flagrante de reportagem que o interessa, É o instante com o movimento exato, essencial, a sua convivência que capta, ignorando o detalhe inútil que iria atenuar, ou até amordaçar, o que quer dizer (22, 48, 52).

Essa sua realidade não usa qualquer aparelho além de seus olhos e seu sentir, não se estriba na forma, no detalhe ou até no movimento fotográfico, o seu ver é sempre dinâmico; o instantâneo foto-cinematográfico que seu olhos apreendem serve para descrever, expressar as figuras de seus desenhos, compor os cenários em que elas vivem, ver os animais e objetos e fazer com que todos convivam em harmonia plástica. Com grande poder de síntese sabe definir em poucos traços uma situação, analisar um caráter. Tudo está focado apenas no essencial, para um contar mais direto. É o cão hidrófobo (7), magnífico retrato de expressão animal; o guarda-freios contra o vento (42); o homem lavando os pés dentro de seu cenário perfeito (54); a mão do trabalhador que sai do bueiro e o gato, que te prepara para roçá-la (47). Sua linha é fácil, corrida, fluida, que se exprime continuamente pelo que não diz, que deixa espaços para a imaginação, para a complementação, que não acaba de falar porque ainda tem muito a relatar. Linha em cima de linha (quatro braços, duas cabeças, relembranças dos desenhos infantis em cima de estampas impressas?) para reafirmar, para dar movimento, para corrigir, mostrando de modo desembaraçado que o homem não é infalível, nem mesmo o artista. Seu trabalho nunca é miniatura, o pequeno não conta, o detalhe descritivo não existe, só aparece para formar um todo, como o próprio Poty, se expressa num falar rápido, sintético, de análise direta e conclusiva.

O retrato de seus personagens

As figuras que representa são do homem real, que não usa sabonete ou pente para posar, que não se maquila para parecer mais belo ou mais miserável, os figurantes de seus trabalhos estão plantados na terra, por isso os pés têm tanta importância.  Enquanto outros olham de longe seus personagens, vêem suas formas externas, ele tem necessidade de viver suas vidas, exprimir o que está representado dentro pela forma exterior, por isso seus desenhos são sempre fieis. O amor a seus semelhantes é sempre reafirmado.

O social está sempre presente mas não de forma panfletária. Há que sentir para criar. Mostra nas vivências da infância em Capanema em "Curitiba, de nós”, texto de Valêncio Xavier, Fundação Cultural de Curitiba, edição Paiol, 1975; para o álbum "30 desenhos de Poty", edição DNER, percorre toda a antiga BR-2 (hoje BR-116), assim ele também conhece e convive com todos os personagens retratados em sua obra. O social por ele abordado, com olhos de carinho e amor para o garoto, o sorveteiro, o distribuidor de pão, o trabalhador de rua, as polacas vendendo verdura, o limpa-chaminés, o homem arando a terra (mostrados em “Curitiba, de nós"), é traduzido plasticamente em claro-escuro violento, que dá possante vigor no desenho referente à paisagem rodoviária. As meias tintas, o ameno, não tem lugar de destaque em sua obra gráfica.

Caráter de seu desenho

Nos raros casos de desenhos mais trabalhados, Poty mostra-se um artista que sabe dominar o material que usa. As suas melhores obras são realizadas em preto e branco, a tinta agredindo o papel alvo, em traço ou chapada, na ânsia de transmitir mais dramaticamente as vivências. Não há um desenho com características dessemelhante do seu desenho comum quando este se destina à gravação no metal;  ao contrário, na xilo ele é de curvas fluídas tomando feição mais decorativa, talvez devido à sua técnica de cortar a madeira.

Bolsa de estudos

Ao viajar para a Europa, em 1946, com bolsa de estudos ofertada pelo governo francês, Poty soube expressar-se plenamente na gravura em metal, é um artista que domina com facilidade o desenho e logra que este chegue ao papel sem que a técnica calcográfica limite o seu exprimir direto e simples, Para ele, recursos epidérmicos de superfícies bonitas não são  necessários, pelo contrário, só poderiam prejudicar o seu contar cru. Através de sua arte sempre  conta a sua vivência, reminiscência, pessoas, fatos, ambientes, objetos, animais, sem que a técnica faça sombra à emoção. Em 1950, quando ensina litografia e gravura em metal na Escola Livre de Artes Plásticas em São Paulo, há uma frase de Marcello Grassmann, que muito o sensibiliza: "Poty passa adiante o que está aprendendo".

A sua bagagem técnico-artística é a ponta seca, a água forte e a água-tinta da gravura em metal e um desenho sempre prenhe de calor humano.  Viajavam com ele dois olhos vivos que sabem ver instantaneamente o todo e o detalhe necessário, desprovido da minúcia que embaraça o seu modo de se exteriorizar em obra de arte. Sua personalidade sabe captar o acontecimento, aprimorado em sua passagem pela ilustração-reportagem feita para jornais e transmitido em linguagem pessoal, para isso a técnica que tem até então é integralmente satisfatória.

Mas é pessoa sempre ávida de mais saber, como aos quatro anos aprende a ler para poder decifrar as letras de velhos "Eu sei tudo”; é homem de compromisso e está com bolsa de estudos. Sente necessidade de um vocabulário técnico mais amplo, pois ainda não disse tudo e muitas outras coisas novas terá a revelar. Chegando a Paris matricula-se na Escola de Belas Artes e frequenta as aulas de gravura em metal com o professor Cami, xilogravura com Gallamis e litografia com Jaudon.
Trabalhos  em litografia

As primeiras litografias são obras de grande formato e retratam lembranças da viagem de navio, Estampas de claro-escuro contrastante com descrições, pode se dizer, detalhadas, do convés do navio, Há o detalhe sem haver o pormenor, como sempre acontece em seu trabalho. A obra litográfica caracteriza-se, como em outra técnica à ponta seca, por dar ênfase ao preto de tinta gordurosa em contraste com o branco do papel, as meias-tintas, os cinzas, quando presentes, portam-se com timidez.  Continuamente aparece a linha raspada sobre o preto (97) que, quando unida, funciona como valor (83). Numa lito encontramos valores de textura (123), em outras o traço, sem continuidade de forma, enrola-se em tons diferentes, sobrepostos sobre si mesmos (154, 164). Há uma peça única no conjunto, quer pela técnica de tinta gordurosa trabalhada liquida com pena, ou pelo estilo do desenho, com as figuras das mulheres dirigindo-se ao bloco de cabeças masculinas que se vê em 1º plano, através de frases escritas dentro de balões, à maneira das estórias em quadrinhos.  As impressões de viagem traduzem o sabor, a curiosidade da primeira grande jornada por cima de água. A obra litográfica se compõe ainda de trabalhos descritivos (Monumento do tropeiro), de peças ilustrativas (A visita do velho senhor), retratos, série Bahia, Mangue; poucas reminiscências infanto-juvenis aparecem. O aprendizado europeu não tem importância maior no seu modo de transmitir-nos a sua criatividade, a não ser uma maior continuidade de linha, curvas mais amplas e na xilo um decorativismo, nunca antes percebido em sua obra.
A xilogravura

É na Europa, como acontece com a lito, que toma contato com a madeira. Observa mais as aulas do que pratica, executa umas das xilos. Seu caminho de gravurista vai do metal já praticado, como sabemos, com pleno fazer técnico e artístico no Brasil, à maneira. São maneiras totalmente diversas de se exprimir; enquanto no metal o artista trabalha a linha (o preto), na xilogravura ele retira a madeira (o branco) em volta do traço, para que esta se destaque em relevo e retenha tinta aplicada pelo rolo.

A xilogravura tem um modo completamente inverso de traduzir o desenho para ser lido graficamente, é inteiramente diverso também no material usado. Assim, de modo geral, quando o artista usa essas duas linguagens não fala de modo idêntico ao dizer sua criatividade

Quando Poty passa a trabalhar também com a madeira, seu contar se mostra mais permeável às influencias folclóricas (bonecos de barro), literárias, decorativas (as curvas mais amplas, plenas, sem quebras, a reta quase desaparece; o desenho mais escoimado de detalhes). As figuras são descritas de modo mais geral, sem o detalhe que lhe dá profundidade psicológica; o cenário desaparece de suas xilos.

Para confirmação do que está dito acima vejamos outro exemplo: Marcello Grassmann tem caminho idêntico, embora inverso; de uma xilo decorativa (analisada dentro de sua  obra) passa, a conselho de Goeldi, a praticar o metal, onde logo se expressa com marcado vigor. A madeira, no freando inteiramente o gesto, como no metal, permite que a habilidade manual de Poty nos chegue mais claramente através da xilo.  Ela, com seu amor mais profundo do que o metal, aproxima o Poty-gravador do Poty-escultor e é jornada para a decoração mural em madeira, para a talha, a que ele sempre chama de madeira gravada.  Observemos que esta madeira gravada/cavada do mural ou da talha pode ser impressa e funcionar como xilogravura.


POTY LAZZAROTTO: “Barbearia”, gravura em metal, ponta-seca, 1943.

Sua técnica de impressão, gravura em metal. Década de quarenta.

Quando deparamos com a obra gravada de Poty da década de quarenta, seu inicio gráfico, logo chama a atenção ao nosso observar a maneira de como são impressas suas cópias. Para o amante (iniciado) da gravura em metal, habituado à aceitação mais corrente da cópia impressa a palmo, estas estampas  causam certa estranheza, sendo muitas vezes os cinzas  e até o preto (estes sempre gravado nas estampas de Poty) nelas obtidos, atribuídos não à técnica de impressão, mas a água-tinta sulcada na chapa.

Seu mestre Carlos Oswald sempre tirou partido das veladuras deixadas  propositadamente na chapa pelo impressor e transferida ao papel pela pressão da máquina calcografica, exercida sobre este papel de encontro à chapa entintada.

Devemos sublinhar, para justa avaliação, que as cópias antigas das gravuras de Poty foram impressas em papel que não chega a ser ideal para a impressão de gravura em metal, que a tinta nacional não era das mais convenientes e ainda, que todos os resultados da estampagem foram obtidos com a chapa a frio e apenas com o emprego da tarlatana.

Observarmos ainda que este deixar tinta, nas partes não gravadas da chapa, serve esplendidamente ao propósito de enfatizar o vigor de sua ponta seca, acentuando seus pretos e também, quando favorece e destaca a veladura formada pela tinta retida na rebarba do traço cavado diretamente com a ponta da agulha, sem auxilio de reagente químico que rebaixa sem deixar, na chapa, vestígios do metal gravado. Me parece um bom momento para dar duas ligeiras palavras sobre a técnica de impressão de veladura e de como estampar a palmo.

Para a impressão calcografica,  a tinta a ser transferida ao papel, deve ser retida, ao contrário da gravura em relevo, nas partes baixas da chapa. Para isso essa tinta é colocada em toda a chapa, nas partes altas e baixas e depois é retirada com um pano de urdidura larga, como a tarlatana, que, cobrindo a mão espalmada, é esfregada na superfície para retirar a tinta das partes que podem ser atingidas, as altas. Os sítios sulcados retém a tinta que é passada no papel mediante compressão da prensa calcografica.

Com técnica conveniente o impressor pode deixar tinta em partes não gravadas,  possibilitando-o a estampar cópias com gama infinita de cinzas e ainda reforando os pretos gravados. São as veladuras tão difíceis de serem repetidas numa segunda cópia, por isso valorizando a cópia em si e  também quase que exigindo que o impressor e o artista sejam a mesma pessoa.

Quando se quer uma impressão em que só o local gravado apresenta-se na cópia, sendo os brancos totalmente limpos, deve-se realizar uma retirada de tinta final com a mão nua, despida de qualquer pano ao papel. É a impressão a palmo.

Toda a impressão da primeira parte da gravura de Poty é feita por ele próprio tirando partido das veladuras, registremos apenas duas: "A fundição” (9) e "A família (54). Nas impressões atuais não utiliza mais o recurso da veladura, os cinzas impressos são os gravados na chapa. Como exemplo vejamos o mesmo "Lava pés (53).

É conveniente ainda mais duas palavras sobre técnica

A ponta seca é o processo mais simples entre todos os outros da gravura em metal:  resume-se a riscar numa chapa polida, com uma agulha, o desenho que se quer gravado; à margem destas arranhaduras fica o metal retirado do sulco e que vai reter alguma tinta e dar característica ao traço aveludado.

Este risco é de pouca profundidade.  Poty descobriu um modo de tornar este traço mais cavado; em substituição à tradicional ponta em bico (agulha) usa uma com a extremidade biselada, como a usada na gravura a buril. Esta ponta, segura com a mão esquerda. A ponta faz sulcos mais fundos e consequentemente, deixa rebarbas mais evidentes. Diz ele que quem lhe sugeriu esta técnica foi Hans Steiner a quem apelidou de "São Francisco da gravura”.  A agressividade técnica destas gravuras adivinha-se o futuro escultor.


POTY LAZZAROTTO: “Fila das seis”, Prova de Estado, gravura em metal, ponta-seca, 1944.

A unidade da gravura

As gravuras sempre têm grande unidade plástica “dentro de cada estampa sente-se a coesão total entre o desenho apropriado, a composição precisa, o claro-escuro denso; e o tema, que é tratado sempre convenientemente, com os personagens em posturas corretas e espontâneas, em cenários condizentes com o que a gravura quer exprimir. Os traços são mais explorados, unidos e sobrepostos, para formar o preto e cinza, do que isolados, valorizando a forma linear, Esta unidade em sua gravura em metal é facilitada pelo quase nenhum emprego da textura, estando essa totalmente ausente de sua obra quando de efeito epidérmico.

Uma de suas escassas gravuras em que a textura é um pouco mais evidente é "José le Bhan” (71), Para aquilatarmos a relativa importância desta textura é bom comparar com os estados (69,70) onde verificamos que a água tinta, anulando o fundo branco e tirando a espontaneidade de uma chapa mal polida, nada acrescenta ao vigoroso desenho e até o granulado do pescoço serve para atenuá-lo.

Em Poty notamos que a docilidade não facilita o seu dizer criativo, a habilidade do  artesão, quando freada pela resistência do material, explode em vigor; referimo-nos preferencialmente à ponta seca. É a fibra do homem artista lutando contra a matéria que se antepõe ao seu exprimir. A ponta seca na sua obra representa o dizer direto, sem artifícios, muito ao seu modo de ser, por isso é tão expressiva e tem lugar de destaque entre suas outras gravuras.

No seu caso, o esforço de sulcar aprimora o desenhista, ensina-o a trabalhar com o silêncio, a dizer com o não dito. Educa-o a falar só com as formas essenciais ao expressar, sem nenhum arabesco decorativo, a abstrair o que distrai do principal. A dificuldade, na ponta seca, do traçar a linha curva faz com que se exprima por planos de profundo preto e linhas soltas que descrevem um gesto (as figuras em fuga de “Cão danado” (7), um objeto (as malas de “Vagão de trem noturno” (21). A disciplina do metal, refreando o dizer rápido de seu desenho e aprimorando-o, torna-o mais profundo, sem tirar a espontaneidade do instantâneo.

Em síntese, sempre que sua facilidade manual é contida seu trabalho expressivo ganha mais impacto. Não estou negando ou comparando (é outra coisa e deve ser vista com outros olhos intelectuais) séries de águas-fortes/águas-tintas dos casarios e barcos da Bahia ou dos matadouros que são realizadas, respectivamente, com olhos do coração e murros de mãos fechadas.

Gravações com emprego de ácido


Nas águas-fortes, como em todas as demais gravuras, a técnica não se destaca; sua função é a de servir ao seu desenho mas conferindo sempre ao mesmo as características inerentes à gravura. Muito raramente o desenho, quando a estampa é impressa, se impõe à gravura (é o caso de 106). A água-tinta, quase sempre de grão fino, é colocada apenas para dar valores de cinzas e pretos à água-forte e ponta-seca (91,67), o emprego do grão de resina mais grosso aparece muito raramente e em geral é discreto (109), Outras técnicas, como “roulete" são difíceis de encontrar (77,136).
As gravuras da Europa

O estudo na França, quando de gozo da bolsa que ganhou, foi mais voltado para a observação, a anotação, do que para a realização.

Depois de um período de quatro anos trabalhando febrilmente na gravura em metal, nada melhor que uma pausa para pensar e também em favor de assimilar o recebimento de um maior saber técnico.

Os conhecimentos básicos de como lidar com as pontas, a tinta, o papel, o ácido, os vernizes e ceras Poty tinha; faltava lhe um maior aprofundamento no relacionamento com o material já conhecido e o descobrimento de novas possibilidades. 

Em Paris faz somente umas duas gravuras em metal, sendo uma destas cavada em técnica nunca usada por ele, antes ou depois. É um buril, (62) com água-tinta para dar ligeiro cinza, com nítida feição humorística – que mostra um homem segurando com as duas mãos, à altura do rosto, uma calcinha enorme de mulher - ; a outra gravura é uma água-forte, (61).



POTY LAZZAROTTO: “Série Bahia”, gravura em metal, ponta-seca, 1950-51.

As séries

No conjunto de sua obra algumas séries destacam-se entre as demais, quer pela qualidade e quantidade de vezes e ângulos com que é abordado o mesmo sentimento, o mesmo assunto abordado o mesmo sentimento, o mesmo assunto.

Logo de início temos que olhar, porque a série nos obriga a isso, para as reminiscências recentes de um jovem (1942, 18 anos, recém chegado ao Rio de Janeiro) que eclodem em borbotões. A sua primeira gravura é um pinheiro (1) com um espantalho, talvez para espantar o passarinho da tristeza para que não cante e traga saudade. - Esta placa está acabando de ser retrabalhada, é a viagem de Rembrandt a velhas e queridas paisagens, vistas por outros olhos, que o duro oficio de viver ensinou (ou condicionou?) a ver diferente. As lembranças, ainda quentes (trabalhos feitos antes de sua viagem à Europa) de realidade visual, estão gravadas, curvadas, inseridas no metal com força, vigor, energia no esforço de dizer claramente à sua gente e também a nós, de sua saudade. Vejamos a série ferroviária  (37, 21, 42,13 etc.), Está ai todo um panorama, trens parados num desvio a que chamou "Paisagem"(13), "Interior de trem noturno” (21), o "Guarda-freios (42) e o delicioso "Desvio"(37) com duas crianças sentadas conversando, enquanto olham o vagão sendo carregado; certamente uma das crianças é o próprio artista.

Impressão do Rio

Mescladas com estas estampas aparecem as impressões do Rio. É o “Morro” (73) da favela da Central do Brasil, com o detalhe preciso de uma pipa presa a um fio da rede elétrica; "Macumba"(121,43), lito e metal com imagem idêntica: "Fila das seis" (35, 36), um retrato cinematográfico, lá estão as  mulheres que conversam, os homens que lêem jornal, o aleijado, o homem na ponta dos pés cobrindo os olhos contra a luz para ver melhor, o caminhão que passa, o cachorro que se coça, são 24 figuras como o artista numerou nas margem do papel de um dos estados desta estampa; o "Bonde"(46, 48) em que se sente que ele está fazendo uma curva etc... São gravuras, como as demais desta época, de claro-escuro vigoroso.


POTY LAZZAROTTO: “Vendedora de flores”, gravura em metal, ponta-seca, 1949.

Os trabalhadores

Os trabalhadores também são olhados: os carregadores que com esforço tentam fazer um caminhão sair do atoleiro; os sopradores de vidro (22) com o flagrante do menino carregando um balde e o equilíbrio do corpo inclinado com o braço esquerdo afastado de perfeita observação  (esta chapa está atualmente refeita (184) e foi cortada do lado esquerdo e direito, o menino do lado direito do impresso foi eliminado); os sapateiros (12), um primor de movimento, mostra o desenho das três figuras.

Outra série é a dos trabalhadores do fogo:  o "Foguista, 1942, (33), a luz emitida da fornalha aberta, para receber a lenha, ilumina violentamente as figuras; outra fornalha é representada na gravura "Caldeiras" (65, 66), é uma vista panorâmica das fornalhas do Desirade, navio em que viajou em gozo de bolsa de estudos para a Europa. Feita no Brasil depois de sua volta, seu desenho se mostra estilizado, a curva tem destaque em sua feitura. Esta mudança ele trouxe da viagem; em duas fundições (9,91) a segunda posterior, usando as técnicas de água-forte e água-tinta, tem um desenho mais solto em que predominam as curvas; a primeira é uma ponta seca.


POTY LAZZAROTTO: “Descida da cruz”, gravura em metal, ponta-seca, com interferência de água-tinta e monotipia, 1945.

Série Sacra

A 11 de agosto de 1945 tem início a sua série sacra, é uma "Deposição de Cristo” (50);  no 1º estado, pouquíssimos traços indicam um esforço violento em que se sente o esforço dos homens para descer da cruz o corpo morto. Esta gravura, como todas antes de sua viagem à Europa, tem tratamento realista.  O restante da série Sacra, feita mais tarde, se exprime com o desenho mais estilizado (210, 155, 156, etc.), mais inspirado na imagem dada aos santos pela escultura religiosa, da qual tem uma coleção particular, do que no homem que convive conosco. Estas gravuras estão feitas com sentido escultórico. Há uma bonita peça, "São Cristóvão (159), cópia impressa por Fernando Calderari, ponta seca de pretos violentos, com os traços bastante profundos, só com volumes, sem linhas de contorno.
Retratos

Nova série se inicia neste período fecundo, 1942/45; são retratos que, já nos primeiros anos, são capazes de definir o retratado em seu caráter visual e psicológico: poucas peças, em geral de formato grande. Ao contrário de seus Santos (comparem com a cabeça de Santo Antonio (115, lito), sente-se nestas gravuras a fidelidade naturalista do autor ao modelo, ainda o respeito pela sua personalidade. São     diferentes as individualidades de Lysete (84), José le Bihau (71), Pancetti (83, lito, este retrato também foi feito em metal), Barão de Itararé (38), Livio Abramo (81), etc.

Gosta de retratar os colegas e amigos mas ao viajar para a Europa não é o capitão do navio que procura; escolhe o foguista  José le Bihau para realizar magnifico retrato. Outro magistral retrato é o de uma vendedora de flores (86, 87). É interessante constatar que nunca se auto-retrata nas gravuras em metal.

Navio

A viagem no navio "Desirade”  fornece-lhe motivo para diversas gravuras, são marinheiros se movimentando em trabalho ou posando; tendo, multas vezes, por fundo o próprio navio, convés, chaminés de respiração, escadas, etc.

O mesmo navio é personagem por si só de duas gravuras (68, 67) que são verdadeiras naturezas mortas, me parece que as únicas em sua obra. O convés mostra-se deserto, exibindo suas chaminés de respiração, cordas, máquina, etc. e até prosaicas cadeira e mesa. O artista também representa a fornalha do navio em outra gravura (65, 66), desta vez o ambiente é povoado de maquinistas, foguistas e homem em trabalho.


POTY LAZZAROTTO: “Série Bahia”, gravura em metal, ponta-seca, 1950-51.

Bahia

As gravuras feitas na Bahia olham o regional, o casario, os barcos, o mar, a capoeira. O homem tem espaço restrito nelas, faz apenas parte de paisagem. Esta série é aquinhoada com algumas boas litos (99, 97, 98), são barcos vistos do mar num preto-branco violento, quase sem cinzas, linhas brancas são traçadas no preto mais intenso por raspagem, revelando a forma escondida dentro do escuro.

A maior parte destas gravuras são abertas sob o metal e se compõe de peças de linguagem técnica mais elaborada, de ponta seca escassamente representada, a grande maioria têm técnica mista, combina o traço da água-forte ou ponta seca com água-tinta.

Encontramos gravuras de técnica descontraída (101), verdadeiros croquis e trabalhos em que o desenho, o claro-escuro, as linhas da água-forte ou os pretos e cinzas da água-tinta são mais cuidados; são estampas também de maior tamanho  (109). Numa destas peças, mais trabalhadas, o homem tem evidência maior: é uma capoeira (129) de traços nervosos e um cinza da água-tinta envolvendo toda a cena. Inúmeras estampas desta série estão nuas de gente.

A morte

No início de sua obra, entre 1942 e 1945, ela é representada de "corpo presente”:  os pés do defunto em primeiro plano, sendo velados à luz de vela; a entrada do cemitério com guarda-chuvas abertos; os coveiros em trabalho. A representação, de acordo com o seu trabalho à época, é cruamente exposta em expressividade plantada em terreno de realismo visual.

Depois de década de 50, também segundo seu caminho artístico, representa a morte de forma mais simbólica por intermédio do esqueleto, às vezes em atitudes caricaturais ou humorísticas. Os escuros não fazem parte destas peças.

Registro

Algumas estampas de Poty podem ser chamadas de documentárias, fazem parte de um álbum que serviu para consignar a construção do Monumento ao Tropeiro, obra mural em pastilhas, situada no trevo de acesso à Lapa, em Curitiba. São todas feitas em litografia (161 a 165). Têm o valor de registro. Devo incluir nesta série as gravuras feitas com estudos realizados no local, para "Canudos", de Euclides da Cunha.
Série Matadouro

As gravuras inspiradas num matadouro de abate de bois (Bahia) são peças em que o artista, apesar de representar sempre a mesma cena, consegue uma grande variedade no desenho e na composição. Para se expressar nesta série usou a gravura em metal, cavando-a com o ácido na técnica de água-tinta e água-forte (136, 137, 138). Algumas destas chapas estão sendo retrabalhadas (204, 137).


POTY LAZZAROTTO: “Off limites”, gravura em metal, ponta-seca, 1948.

Série Mangue

Nesta série, Poty fala, às vezes, com linguagem naturalista (122,60,59); em outras, de forma estilizada (160, 150). Uma lito (125) recebe tratamento decorativo no detalhe das cortinas caídas sem nenhuma prega. A particularização decorativa é rara na obra do artista.  A composição geralmente é equilibrada entre a verticalidade das portas e figuras em pé e as gelosias das janelas e portas. A diagonal aparece raramente e não tem importância maior.

As ilustrações

Há gravuras em metal destinadas a ilustrar textos literários de escritores como Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Machado de Assis, etc,, que podem ser juntas numa série. 

Os moradores das gravuras de Poty

O povoamento de suas gravuras é feito com atilada observação. Por povoamento estou me referindo ao desenho que representa o homem e o ambiente em que vive (cenário), os animais, as casas, etc., que o artista usa para se exprimir. Em suas gravuras o homem é sempre tratado como personalidade individual, visto nas vinte e quatro horas do seu dia, no trabalho (9, 42,66), na volta para casa (21, 36), ou já em seu lar (54).  No trabalho (25) ou no lazer (129), o homem representado nunca é o que una paletó e gravata, o enfeitado para ir a uma festa, ele sempre cheira a suor.

Se o homem recebe a mirada profunda do artista, o cenário que vai servir de sua morada permanente (no caso da obra de arte realizada) não é negligenciado (36,54,48 66,144), A observação precisa valoriza o ambiente, o espelho quebrado da "A barbearia (727), ainda nessa chapa o chapéu sobre a cadeira  enquanto o freguês espera em pé e a cadeira com adaptação ao serviço de barbear; a bola esperando o conserto no Sapateiro (712), a mão saindo do bueiro no "Bonde” (48), etc. O cenário ermo também tem lugar em sua obra; logo nas primeiras gravuras temos a linha férrea (13) tão de seu agrado; mais tarde, quando e depois de uma viagem à Europa, ficam-nos as cenas do navio (71, 67) e os casarios de Canudos e da Bahia.

Os animais

Especial atenção têm os animais, desde o elefante de "O picadeiro (14) (1943) à observação mais aguda dos cavalos de "Desvio” (37), da série do Monumento ao Tropeiro (161 a 165); dos bois de toda a “Série Matadouro” (136 139); do cão, que tem lugar de destaque, ele é representado em diversas situações o "Cão danado” (7) afugentando os homens, o cão  observando a briga dos garotos e pronto para fugir (147),o cão bebendo água do passeio enquanto os vagabundos  embriagados comem e bebem,  o da "Fila das seis” (36) que se coça despreocupadamente; as pombas de São Francisco (173) ou o passarinho na gaiola (27), algumas das poucas aves que raramente aparecem em sua gravura. Constatamos, convivendo com a sua obra, que seu céu está sempre deserto de aves. Seus pássaros não voam.

Possíveis influências

Estudar influências na obra de Poty não é tarefa fácil.  Artista intuitivo, deixa o seu trabalho ser conduzido pela emoção, sobretudo antes de sua viagem à Europa; a carga de educação intelectualizante que assimila é bem reduzida. Sua visão é formada, quase que exclusivamente, pela observação direta e não através de obra de outros artistas.

A primeira pessoa que o acompanha artisticamente no Rio de Janeiro é Augusto Rodrigues, mas sua ascendência é mais de vivência artística e não traz contribuição ao trabalho de Poty.

Em "Decida de Cruz” (50) vislumbramos influência de Rubens através de Rembrandt.  Depois da volta de Europa encontramos a arte de Poty mais intelectualizada, mais permeável a contribuições.

Podemos ver, em seus Santos, a influência da escultura em geral, da barroca em particular esmiuçando mais, de Aleijadinho.  Distinguimos também, com certa nitidez, influencia folclórica, por meio dos bonecos de barro do Nordeste.

Lasar Segall também pode ser adivinhado, especialmente na série dos Navios, quando são vistas figuras de marinheiros e chaminés de respiração; mais longinquamente na série "Mangue".


POTY LAZZAROTTO: “Trabalhadores”, gravura em metal, ponta-seca, 1949.

Maturidade

Com as chapas retrabalhadas Poty mostra-se em plena maturidade de gravador São 38 anos de carreira. É a maturidade que permite que o dizer do artista seja mais natural, seja emitido com maior convicção. Ela possibilita o convívio desinibido do artista com seu vocabulário material (que usa para se expressar) e também um diálogo franco com o seu eu mais profundo. O gravador Poty tem a maturidade nas mãos, servindo-lhe como ferramenta para abrir as suas chapas.

Retorno sentimental

Nestes trabalhos Poty está fazendo uma visita sentimental ao seu passado; segundo o seu dizer, é uma avaliação, é um rever, com outros olhos, das mesmas paisagens.

Uma das primeiras chapas escolhidas para ser recriada foi o "Pinheiro” (1), sua primeira gravura aberta no metal (1942). Este exemplar serve otimamente para saborearmos o novo ver do artista. Os pinheiros do primeiro estado da gravura primitiva recebem, quando a gravação pronta, um espantalho. Para poder retrabalhar esta gravura Poty cria uma névoa que esconde (destrói) o desenho, é a diluição do passado.

Com o desenho amortecido, recria a estampa, que se mostra bastante idêntica à  primeira de 1942, a recriada com vegetação mais evidente e abundante, mas o "ontem" ainda está mais presente do que propriamente o “hoje”.  Numa segunda versão rebaixa novamente o desenho e regrava uma visão mais atual, com os pinheiros desenhados de forma estilizada; o espantalho, só com os traços essenciais, mostra a palha que sai de sua roupa, o chapéu que usa é mais atualizado. Há um detalhe importante, seu braço direito atinge e transpõe o limite esquerdo da chapa (177). 

Sua segunda chapa também é mais do que trabalhada; é recriada. Na imagem da gravura original (1942) os bêbados cantam “Fora de compasso” (2,3). Agora na cópia recriada (1980) o que vemos é acentuado por contrastantes pretos; o desenho é simplificado, duas figuras não têm mais rosto, a garrafa e dois copos destacam-se devido à perspectiva diferente da mesa. À ponta-seca foi acrescido grão granuloso gravado em água-tinta.

Outras chapas retrabalhadas

Uma outra de suas gravuras iniciais (possivelmente a terceira feita) segue o mesmo caminho de recriação dos pinheiros. Numa primeira chapa pouco muda (181).  Os pretos tornam-se mais densos cobrindo os personagens; o desenho é esquematizado. Os figurantes continuam os mesmos, mas com visão mais plástica do que antes, discutindo em torno de uma mesa de jogo, A chapa retrabalhada que transmite a recriação final (182) do artista é bem diferente. As figuras têm mais movimento, um simples virar de cabeça ou braço estendido possibilitam isso. A simplificação é decisiva, no desenho e na eliminação de quatro figuras.

A linha reta domina o quadro, os escuros da segunda etapa são abrandados. Vemos, nesta gravura, a ponte que liga seu estilo passado com o do presente. As duas figuras do 1º plano são o que restou do naturalismo já ultrapassado. O “Guarda-freios", explorando o motivo ferroviário tão querido na sua 1ª fase, também uma chapa recriada. Na primeira imagem é uma das gravuras de claro-escuro mais simples (42), o desenho está pleno de observação, o vento é sentido no homem sentado segurando o boné, nas roupas dos dois homens, na inclinação do corpo. Para a recriação o artista elimina uma figura raspando-a (185), (no estado impresso podemos ver o andamento do seu trabalho), também um sol é acrescentado ao desenho e os escuros do homem em pé são mais violentos.

Mas, como no desenvolvimento dos trabalhos comentados anteriormente, vemos o artista caminhar para um claro-escuro acentuado e desistindo deste; partir para o estudo evidenciando a forma. Na recriação derradeira desta estampa o sol se transforma na saída de um túnel, o vagão da frente, antes visto parcialmente é eliminado junto com uma das figuras, o homem contra o vento perde toda a violência dos escuros A água-tinta posta serve para suavizar toda a cena centralizada na figura do homem em pé (186). Outra recriação que também queremos comentar é “A família"(54), que passa por fase de simples repensar, ao passo, do assunto, mudando pouco, para chegar a uma transformação radical.

O cenário é eliminado, as figuras, de contornos fechados, são fortemente estilizadas (apenas a do primeiro plano conserva muito de sua forma original), o gesto tem mais importância que o dizer. A perspectiva da bacia em que o personagem do 1º plano lava os pés é respeitada, mas a da mesa é totalmente deformada. Não nos é possível, como elas merecem e seria do nosso gosto, nos aprofundarmos mais na análise destas e de outras chapas recriadas.
 

Uma nova imagem


Temos ainda para comentar uma imagem inteiramente nova. Sintomaticamente é um São Francisco (175), tantas vezes representado em sua obra. Tratado de forma estilizada, em planos definidos, mostra tristeza e bondade. É um Santo conformado, apesar de seus lábios cortados com decisão, revelando energia. Estampa que transpira humildade, acentuada pela ave que pousa no ombro do Santo e, como ele, também nos olha.

Gravuras recriadas

As gravuras recriadas mostram maneira de atingir e criação totalmente diferentes das pontas secas de 1942/45. As antigas pontas-secas de Poty, como podemos constar através dos estados, revelam, desde o início, a determinação final do artista. Ele sabe o que quer, o resultado da chapa terminada é visível dentro dele mesmo antes de iniciar a gravação. Estas pontas-secas são construídas de degrau em degrau, aos poucos, traço a traço, figura a figura. (Os estados que o artista gravador imprime de seu trabalho são ótimos para revelarem o modo de seu criar. Passo a passo, eles nos dizem das decisões, da timidez ou audácia em conduzir composição, o desenho, o claro-escuro. Enquanto as pontas-secas falam com o instinto, as gravuras recriadas, feitas em 1980, dizem mais com o raciocínio, sem ausentar a emoção. Esta está presente em escultórica pietá, "Nossa Senhora com filho ao colo” (208, 209) em o caminhão sendo empurrado etc. 

Síntese

Nas chapas retrabalhadas/recriadas vemos uma determinação maior no fazer, simplificação do desenho por estilização de linha, por eliminação, por abrandamento do claro-escuro, há mais atenção ao gesto (plástica) do que à fala (literatura); o dinamismo dado à chapa por corte, não para criar a forma da figura aproximando-a da escultura, como antes, mas para eliminar o quadrado de sua forma tradicional. Constatamos também a reunião, na mesma placa, de mais de uma técnica; e ainda, que a mesma mensagem é dita com mais doçura, sem gritos, com simples murmúrios.


POTY LAZZAROTTO: “Marcha fúnebre”, gravura em metal, ponta-seca, dec. 40.

Palavras finais

Suas recriações trazem um recado a ser meditado por todos nós, artistas e amantes de arte; é a possibilidade do confronto do mesmo artista em épocas diferentes pelo seu realizar. É a constatação do artista que (em vez de estar repetindo sempre a mesma imagem, e/ou os vícios de habilidades técnicas, em chapas diferentes através dos anos) tem a audácia de criar, com linguagem inteiramente diversa, em cima de suas chapas . Caro Poty, tomo coragem para pedir ao artista, que teve a ousadia de destruir gravuras que trouxeram tanto sucesso ao seu nome, muitas mais destas recriações junto com imagens novas do seu ver atual. Solicitar-lhe um conviver mais constante com chapas e pontas, para que possamos usufruir de seu trabalho de gravador mais frequentemente.

Divagações sobre a situação da gravura no Rio de Janeiro entre 1914 e 1942, quando do início gráfico de Napoleon Potyguara Lazzarotto, para contribuição à compreensão e estudo de sua obra de arte. Para dizer da gravura de Poty no âmago da gravura brasileira e ser compreendido, há necessidade de compor quadro claro, se bem que essencialmente sintético por força do trabalho que ora apresentamos, dos acontecimentos e pessoas que possibilitaram o nascimento de uma gravura brasileira com essencial pujança para o aparecimento característico, e de certo modo refinado, do artista gravador especializado. O artista que se dedica tão somente à gravura de arte, sem mesmo, muitas vezes, um desvio para o desenho com expressão independente.

O esquecimento e desconhecimento da memória não favorece a compreensão e o estudo de gravura brasileira, por isso é indispensável conhecer o fato histórico para poder estudá-la e compreendê-la na totalidade e mesmo no valor individual da obra de cada artista. Este negar da memória serve para descaracterizar o rumo, com valores estéticos e técnicos, que pioneiros dedicados à gravura iniciante, como Carlos Oswald, Osvaldo Goeldi, Livio Abramo e outros, deram à gravura que, por estar nascendo, tinha individualidade própria. O esquecer as raízes leva a gravura brasileira às estradas da gravura internacional, aos caminhos do já feito, do já realizado, da arte rotulada.

Em 1911 o Liceu de Artes e Ofícios sediado no Rio de Janeiro, estabelecimento de ensino mantido pela Sociedade Propagadora das Belas Artes, está em plena expansão. Neste ano são programadas novas aulas: oficina tipográfica, impressão, encadernação, pautação e douração, cerâmica, gravura de medalhas, zincografia, litografia, xilogravura e água-forte - atelier foi chamado de água-forte mas se destinava a todas as técnicas da gravura em metal. Todas as oficinas receberam o que havia de melhor em maquinaria, ferramentas e demais materiais necessários a seu pleno exercício.

Para a compra, na Europa, de máquina impressora calcografica, chapas, ferramentas, produtos químicos e demais aparelhagem foi encarregado Modesto Brocos (Santiago de Compostela 1852 - Rio de Janeiro 1936), ele próprio gravador. Espanhol de nascimento, em 1872 está no Rio de Janeiro para trabalhar em jornal, como já o fizera em ano anterior em Buenos Aires, antes em 1875 publica a xilogravura no jornal “O Mequetrefe”; pratica também a gravura em metal. É um dos primeiros no Brasil a abrir a gravura de sua própria criação. Já em 1913 a oficina está plenamente montada com todo o material, inclusive prensa elétrica vinda da Alemanha e que tem 80 cm de entrada (largura), pronta para funcionar. Por sorte da futura gravura brasileira é Modesto Brocos, quando de sua estada na Europa de 1897 a 1900, que encomenda a aparelhagem necessária e é Carlos Oswald (Florença 1882 - Rio de Janeiro 1971), em 1913, recém chegado da Europa, para ficar aqui definitivamente, quem é nomeado professor de gravura artística em metal. Para estudarmos a obra que nos propomos é indispensável dar uma olhada carinhosa na figura de Carlos Oswald.

Quem é o artista Carlos Oswald que aporta com 32 anos incompletos já com sua série Florentina gravada (obra composta de 47 gravuras sendo apenas uma aberta em Paris) completa, em que se destaca o vigor transmitido às estampas que representam os bois de Forte dei Marmi? As gravuras que traz, feitas em seis anos de prática, demonstram um perfeito domínio da técnica, mostrando obra de artista pioneiro. Seu convívio com o metal, os ácidos mordentes, as ceras e ferramentas para o aprendizado da técnica, foi feito fora da Academia de Belas Artes de Florença, onde estudava modelo vivo, em 1908 quando toma contato com a arte moderna. Ele e mais um grupo de artistas, Graziosi, Falorsi e Carl Strauss, se reúnem nas imediações da Porta Romana, em Florença, para praticarem a gravura em metal. Abrem seus trabalhos no zinco sob orientação de Carl Strauss, americano de origem alemã radicado em Florença e com experiência em gravura de arte.

Meditemos que em 1910 Carlos Oswald já faz gravura colorida e transporta a tinta de suas chapas para placas de gesso. E artista de obra rigorosa mas de atitudes doces para todos os que convivem com ele; completamente incapacitado, por temperamento, de um gesto mais agressivo. Este temperamento raro e inapto a uma luta hostil é que irá, através de tenacidade e amor, implantar a gravura de arte, chamada original, no Brasil.

Ele lutou, falando individualmente a cada um, com as aulas, em conferência, artigos de jornal e revistas, livros, fundando sociedade divulgadora de gravura; ele lutou para nos mostrar que a gravura não é uma arte menor dependente por inteiro do desenho. Necessitou de bastantes anos e de uma plena certeza interior, para provar que ela é uma arte independente, de expressão própria e não podendo ser falsificada por outra técnica.

Este pioneiro  que viu a gravura original renascer na Europa recebe, em 1914, uma oficina, perfeitamente instalada, para tentativa corajosa da implantação da gravura em solo artístico brasileiro.

A aula de água-forte está localizada na via mais central, à época, da então capital do pais, no prédio recém-inaugurado na Av. Rio Branco, nº 174. São abertas as matrículas em horário noturno, como todas as demais aulas do Liceu, mas os alunos não aparecem; ninguém sabe o que seja isso de gravura de arte.
 

É forçoso a Carlos Oswald sair à cata de alunos, é preciso doutrinar, dizer o que é uma gravura, convencer um a um a praticá-la. Ele leva para sua oficina-atelier os artistas aos quais tem acesso e a quem julga mais perto de assimilar as características da gravura: Henrique Bernadelli, Adalberto Mattos, Antonio Matos, Argemiro Cunha, José Cordeiro, Ernesto Franciscôni, João e Artur Thimóteo da Costa, Pedro Bruno, Carlos Chambelland, Oswaldo Teixeira, Luciano Gallet, seu irmão Alfredo Oswald, os dois últimos músicos, os demais artistas plásticos. 

Esta primeira colocação de Carlos Oswald como professor de gravura não é a clássica, à época, do mestre que fica num estrado mais alto e fala com a autoridade de quem sabe mais;  é a do divulgador, do propagandista, do cantor que diz dos encantos desconhecidos da gravura. E o artista em tertúlia com o artista, em que fala também da técnica.

Nesta primeira fase da oficina de água-forte do LAO os praticantes de gravura que a frequentam não entenderam que esta tem características próprias. Olharam a gravura como uma arte que tem a reprodução, talvez mesmo só vissem isso, como sua principal característica, Fizeram simples estudos por curiosidade da técnica, ou encanto ao mistério do emprego dos materiais, realizaram retratos, diplomas, ex-libris, encomendas outras. 

Em 1919 a diretoria do LAO resolve fechar a oficina, o motivo alegado: construção de nova ala no edifício da sede. Que contribuição trouxe à gravura brasileira essa primeira fase da oficina-atelier do LAO? Na minha opinião o fechamento da aula foi benéfico, pois possibilitou  a meditação de como tornar o solo fértil à plantação, florescimento e frutificação e da gravura brasileira. Penso mais, que uma época em que ainda se media arte, classificando alguns dos seus ramos de arte menor, não era possível destacar uma Arte que trazia o enfoque novo de Arte independente do desenho, de pintura, com características próprias de expressão sublinhadas por regras como assinar uma a uma as cópias impressas, limitar as edições numerando-as, etc. Carlos Oswald ainda deu uma clarinada em favor da gravura, protestando contra o fechamento da aula. Organizou no próprio LAO, em novembro de 1919 "1ª Exposição Carioca de Gravura Água-Forte". Participaram dela, expondo gravura em metal: Carlos Oswald, Antonio Mattos, Modesto Brocos, Argemiro Cunha, Adalberto Mattos, Mille. Cora F França, Mlle. Maria Silva, Armando Magalhães Corrêa, Altino Moraes, Augusto Bracet, Arthur Timotheo, Florasper Renzetti, Ernesto Francisconi, Georges Bloow, H. Bernardelli, João Timotheo, Isaltino Barbosa, José Cordeiro, Helios Seelinger, Leopoldo Campos Gotuzzo, Mario Tulio, Márcio Nery, Morel Soutello, Paulo Mazzuchelli, Raymundo Cella, Rodolpho Chambelland etc. Mostraram litografia: Valle de Souza Pinto, Pedro Peres, Helios Seelinger, A. Cunha Moulin, Hermogenes Marques, Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro, Antonio Mattos, Mlle. Cora França, Mario Tullio etc. Em total são mais de 110 trabalhos expostos.

Temos um intervalo de 10 anos, em que Carlos Oswald, continuando professor de desenho do próprio LAO, confabulava sempre junto à diretoria para a reabertura das aulas.  Neste período ele não parou de fazer gravura, abre 20 placas, trabalha em seu próprio atelier e em prensa da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
 

Finalmente em 1930 é ouvido e, por intervenção do professor Eurico Alves, a prensa que havia sido desmontada, é armada "provisoriamente" em pequena saleta. Se o primeiro período do atelier de água-forte do LAO caracterizou-se pela boa qualidade de suas instalações, bons materiais, ferramentas, produtos químicos importados etc, e não foi "bem aquinhoado pelo elemento humano, culturalmente despreparado para usar esses benefícios por desconhecimento do mundo próprio da gravura, o segundo, ao contrário, teve instalações que se chamaram de “provisórias” que persistiram enquanto Carlos Oswald foi professor. Mas, em compensação, os alunos que procuraram suas aulas o fizeram ainda livres  e descristalizados de conceitos rígidos  que o fazer arte somado ao tempo de trabalho, servem para construir e fortalecer a individualidade própria, que sedimentada pelo tempo dificulta a compreensão da linguagem diferente. Aos virgens de conceitos era lhes mais fácil aceitar ideias novas. Há necessidade de um parêntesis para dar um claro entendimento do parágrafo acima, quando me refiro ao elemento humano culturalmente despreparado, quero agora enfatizar que não estou entrando no mérito da criatividade artística.  A Europa ainda estava em plena tarefa da mudança de enfoque dos valores da nova gravura, ainda estava na lida de dar categoria de arte à técnica que até então estava servindo apenas como veículo de reprodução do desenho. Os artistas já mencionados deram o crédito do seu nome à técnica que até então era usada por artesãos especialistas em reproduzirem suas próprias invenções, têm quem ser olhados como uma abertura valiosa para a futura gravura original, que se faz atualmente no Brasil com respeito à linguagem própria que ela tem. 

Como já foi dito, depois de 1930 acentuando-se depois da década de 40, o atelier foi procurado pelo artista jovem, ainda em formação, continuando o professor, basicamente com a mesma filosofia de vida.

O aluno (a) - nesta fase revela-se a mulher interessada em gravura, arte masculina ate então - é sempre tratado como um colega ("só artista pode fazer gravura"), tem direito e respeito, a ideias políticas, religiosas, artísticas, diferentes do professor. Este lhes fala mais de estética, escolas e história da arte do que propriamente de técnica. Como retrato mais fiel de sua prática de ensino: - todos sabemos dos inúmeros gravadores que formou, direta ou indiretamente, mas examinando a obra de um por um, nenhum reflete influencia sua, isto é característico do bom professor de arte, não ter aluno que siga o seu dizer.

O que era a sala de aula em 1942, ano da matricula de Poty, artista-gravador a quem se dirige este divagar? O espaço físico era ocupado pela grande prensa, uma mesa utilizada para entintar as chapas, duas prateleiras altas ao fundo, embaixo da mesa pequeno banco que procurávamos manter sempre limpo, para quando o professor chegar, poder sentar fora da sala, pois lá dentro só havia espaço para três alunos, pedindo licença.

Das ferramentas e outros materiais da instalação antiga não restava mais nada. De corpóreo só existia, como vimos, o atelier de impressão. As ceras e vernizes importados não subsistiam mais, o professor fornecia as fórmulas e alunos as confeccionavam em casa, também em sua casa mergulhava a chapa no ácido ou a feria com pontas e buris para abrir sulcos diretamente. Errava-se demais mas, estes desacertos muito contribuíram para uma estampa mais vigorosa em claro-escuro e agressividade no ataque ao metal, muito somaram para encontrar caminhos próprios, corretos de técnica mas sem requintes voltados apenas para a técnica.

*Orlando Dasilva foi um importante artista gravador aluno de Carlos Oswald, além de professor e pesquisador da história e técnicas de gravura artística. Produziu esse importante artigo biográfico sobre Poty como introdução para o livro de sua autoria, “Poty, o artista gráfico”, editado pela Fundação Cultural de Curitiba em 1980.