POTY LAZZAROTTO: "Lavadeiras", gravura ponta-seca de 1949, feita exclusivamente para o Clube dos Glifófilos.
A importância de Poty: pela chamada
dos artistas jovens sobre as possibilidades da gravura como linguagem
independente
Orlando Dasilva*
A grande dívida da gravura
brasileira com Poty se origina no seu sucesso imediato que serviu como uma
clarinada troada no momento exato em que os jovens não aceitavam mais a arte
convencional que se fazia até então. A gravura com seu rigor técnico tem tendência
a frear no artista os voos mais ousados, por esta razão envolve o gravador com menor lastro
de criatividade impedindo-o, para se realizar, a exibir-se em malabarismos
técnicos, fabricando superfícies epidérmicas, que nada têm com a criatividade,
mas que enchem os olhos dos leigos.
POTY LAZZAROTTO: "Fora de compasso", gravura em metal, ponta-seca, 1942
As primeiras estampas
A estampa de Poty, em 1942, traz um recado, ainda não dito, de um realismo
descritivo sem participação, vamos dizer assim à falta de palavra melhor; não
fala com verborragia política, retrata o trabalhador, o pobre, vê seus personagens
com carinho, fidelidade e respeito, sem piedade piegas. Representa os bêbados num momento feliz em
"Fora de Compasso" (2); “o salão da barbearia"(27) com fregueses
esperando a sua vez, lendo ou discutindo para passar o tempo; crianças no
"Desvio" (37) do trem vendo o seu carregamento; o "Guarda
freios"(42) contra o vento com as mãos nos bolsos, um flagrante delicioso;
o "Bonde" (48) apinhado de gente mas o enfoque principal é o lirismo
do gato procurando carinho; em "Vagão de trem noturno” (21), o cansaço
domina o corpo fatigado - há até uma nota esporádica de humor, com uma senhora
dormindo no porta mala, uma nota discreta que, por isso mesmo, não tira o
impacto da estampa. Mesmo quando o assunto é trágico "Cão danado" (7)
é tratado num claro-escuro vigoroso mas sem lastros de tragédia, é a ação que
se mostra em linguagem plástica, sobrepondo-se ao drama. É o primeiro artista
jovem, com tendência moderna, a se dedicar somente à gravura em metal, o
primeiro a ganhar medalha de ouro com gravura no Salão Nacional de Belas Artes
em 1949, o primeiro a receber bolsa de estudos do governo francês para estudar gravura
em Paris, isso em 1946; dá os primeiros cursos de gravura em metal em São Paulo
(1950), Salvador (1950/1), em Curitiba (1953), onde o atelier de aula recebe o
seu nome, e em Recife (1954).
Confronto entre seus preços e de outros artistas
Seus preços iniciais são altos. Para pesarmos o valor à época de sua gravura
nada melhor que comparar preços: do catálogo da "Exposição de Arte
Moderna", Belo Horizonte, 1944, Poty tem gravuras com os seguintes preços:
"Circo” (14) por Cr$ 1.000,00. Trabalhando (20) – Cr$ 1.500,00;
"Sapateiro” (12) – Cr$ 1.200,00, "Trabalhadores de rua"(18,19) -
Cr$ 1.500,00, "Lavadeiras” - Cr$ 1.000,00. Este mesmo catálogo mostramos os preços de dois mestres da
gravura, Livio Abramo, que cota a sua "Serie Operários" entre Cr$ 600,00
e Cr$ 700,00 e Oswaldo Goeldi com as séries "Humilhados e ofendidos” e “Carlitos",
todas as estampas ao mesmo preço- 200 cruzeiros. Em catálogo da Galeria
Calvino, de janeiro de 1949, seus preços já estão mais de acordo com o mercado
mas, mesmo assim, vale uma comparação: suas peças vão de Cr$ 300,00 a Cr$ 730,00
no mesmo catalogo as gravuras de Carlos Oswald variam entre Cr$ 150,00 e Cr$ 400,00
- 0 dinheiro em circulação à época é o cruzeiro velho.
Com vigor é amarrada toda a sua obra
Ao analisar o conjunto da obra gravada de Poty temos que tomar conhecimento,
nem que seja numa olhada panorâmica, de seus trabalhos em outras técnicas. É
preciso conhecer o artista gravador, desenhista, ilustrador, muralista,
decorador, escultor e isso se transforma num desafio. Como conciliar seu
trabalho mural, especialmente quando em concreto, com as obras gráficas em
metal, madeira ou pedra? Por que a linha decorativa, quase sempre presente em suas
xilos, raramente aparece em suas calcogravuras? Na sua xilo muitas vezes encontramos
vinculação com o mural, mesmo porque, em inúmeros casos o material usado é o
mesmo, a madeira.
Mas há uma linha comum que une toda a sua obra; é o vigor, quer no traço de
seus desenhos lançados rápida e nervosamente no papel, quer no corte decisivo e
fundo na madeira para a xilo, a talha ou o mural; é a tinta engordurando a
pedra nas suas litos e criando contraste marcantes; é o relevo acentuado de
seus murais de concreto; é a ferida profunda causada pela ponta seca ou ácido
nas gravuras em metal.
Sabendo de sua personalidade só nos é possível compreender o decorativismo de
seus murais e xilos, não só através do estudo do material empregado, mas
tomando conhecimento também de sua facilidade e habilidade manual, somando
ainda a memória visual, que lhe facilita a linha simplificada e corrida. Essa
convivência fácil com a técnica, sem necessidade de evidenciá-la, faz com que encontremos
Poty em toda a sua obra, mesmo sendo essa expressa com linguagens diversas.
Mesmo constatando isso e não tendo dúvida de sua presença em seu trabalho,
ainda entendemos que sua personalidade mais característica mostra-se mais
atuante nos seus desenhos e nas gravuras em metal. É aí que ele se expressa sem
o véu do agrado, se bem que grande parte de seus desenhos são feitos sob
encomenda para capas de livros, ilustrações etc.
Percorrendo seus trabalhos vamos nos deter com um pouco mais de atenção nas
gravuras em metal, que proporcionam chão firme para o estudo que ora fazemos.
Elas nos facilitam a compreensão das outras obras suas com técnicas diferentes,
mostram-nos seu início, com o artista apresentando-se totalmente despido do
ensino escolarizante, que por vezes afoga a personalidade pessoal do aluno. A
gravura em metal, dentre todos os trabalhos de técnicas diversas que pratica, é
a que melhor deixa revelar o desenhista que, por sua vez, é quem melhor divulga
o seu "eu". Queremos acentuar aqui - antes de tudo Poty é um
desenhista.
Primeiras informações formativas de sua personalidade artística
Para encontrarmos os inícios artísticos de Poty temos de nos reportar a sua infância.
Aos 4 anos aprende a ler para decifrar as letras do "Eu sei tudo", que
tanto o desafiam; aos cinco, seus olhos saboreiam as estórias em quadrinhos,
vibram com seus heróis, Back Rogers, Tarzan, Red Barry, Aninha, Mandrake e
tantos outros, então emergentes e com grande aceitação. Para ele não só o
enredo tem importância; como boa criança que é, vê com encanto a forma gráfica
como estas eram contadas, olha, com seus olhinhos de cinco anos de idade que se
iniciavam na análise de forma, o desenho elegante de Geo McManus na criação de
Pafúncio comparando-o com a linha fortemente personalizada de Chester Gould ao
desenhar Dick Tracy. A motivação que as estorinhas em quadrinhos lhe dão é
extravasada sobre as ilustrações dos livros que lhe chegam às mãos; figuras
recebem chapéus que não têm, cabeças e pernas novas sobre os já impressos.
Tem o seu primeiro emprego que lhe é pago com sessões de cinema, carregando as
latas dos filmes tem direito a assisti-los: especial atenção recebem os seriados, mas logo
sus predileção se volta para os filmes mudos, mais antigos, que já não são
exibidos comercialmente. Fazem parte da filmoteca particular do dono do cinema
e são projetados para uns poucos, com pequeno projetor e vistos em tela menor,
montada atrás da que mostra o filme comercial. Entre outros, vê fitas com Buster Keaton, Harold Lloyd, Douglas
Fairbanks, Mary Pickford, Laurel e Hardy, filmes de Keystone Comedies. O garoto Poty já tem especial atenção para o gesto, o flagrante
em movimento. A falta da palavra evidencia a forma. Seus olhos treinam para, no
futuro, representar nos seus desenhos a ação por meio da linha estática
Primeiras aventuras. A estória em quadrinhos
Em 1938, já então com 14 anos, o Diário da Tarde de Curitiba publica “Haroldo
-0 homem relâmpago. Suas aventuras em 6 capítulos", histórias em
quadrinhos de sua autoria. O memo Diário de Tarde, em 1939, cria um “Concurso
de legendas”. Condições a que deverá obedecer essa prova a que deverão
concorrer os escolares de Curitiba disputando 24 prêmios em dinheiro no valor
de 300$000: "Bases para o concurso de legendas para os desenhos animados
feitos por Poty. 1 - Só poderão
concorrer os alunos de escolas particulares ou públicas. 2- Cada concorrente
adquirirá um caderno colegial de 48 ou mais folhas, fazendo constar nele seu
nome, idade, colégio ou escola em que estiver matriculado, classe a que
pertencer. 3 - O concorrente cortará o desenho de Poty, o colocará numa página
de caderno e redigirá para cada quadrinho uma legenda para ir formando uma
narrativa de aventuras de gangsters nacionais, com nomes nacionais, lugares
nacionais etc, a história deve se passar no Paraná e em linhas gerais se trata
de assunto de contrabandistas. 4 - A história que mais se aproximar do texto
original da escrita pelo próprio Poty e está arquivada nesta redação receberá o
primeiro prêmio...”. O regulamento
estipula ainda que: o texto seja corretamente escrito, que a linguagem seja
boa, o entrecho encadeado, 50% do valor do trabalho creditado à redação etc.
Dos prêmios fala o parágrafo 9: "Serão distribuídos em cadernetas da Caixa
Econômica os seguintes prêmios: 1º prêmio de 100$000; 2º - 50$000; 3º - 30$000...
"etc.
A grande viagem, Rio de Janeiro, estudos
1942 o encontra estudando no Rio de Janeiro com bolsa de estado oferecida pelo
Governo do Estado do Paraná, sendo interventor à época Manoel Ribas. Poty quer
oportunidade maior de estudar arte. Neste mesmo ano matricula-se na Escola
Nacional de Belas Artes e no Liceu de Artes e Ofícios Na Escola, Rodolfo
Chambelland, seu professor de desenho na aula de modelo vivo, fala-lhe de linha
quente e linha fria. No Liceu, a personalidade delicada e sensível de Carlos
Oswald ensina-lhe técnica de gravura em
metal e diz com amor de vivências artísticas. Na Escola de Belas Artes, como
aluno assistente, estuda ainda anatomia com Alfredo Galvão e pintura com
Marques Junior, mas, segundo o seu dizer, só o atraía a forma expressa pelo
claro-escuro e linha do desenho.
Mas devemos anotar, que expondo pintura
e gravura em 1945, no Salão Nacional de Belas Artes, Poti recebe como prêmio em
pintura a medalha de bronze. O Rio de Janeiro lhe fornece e possibilita de
ampla convivência artística, Portinari, Percy Deane, Hans Steiner, Percy Lau, Cêurio
de Oliveira e muitos outros. Todos os citados fazendo gravura, a maioria a ela
se dedicando
inteiramente.
Seu desenho imediatamente se firma e afirma sua personalidade. A marca de Poty
é patente logo em suas primeiras gravuras, cito a gravura, pois é por ela que o
artista primeiro mostra seu desenho marcadamente pessoal. Da terceira gravura
em diante, o desenho ganha estatura artística não encontrada antes em sua obra.
Devemos ressaltar que Poty está com 18 anos.
O nome POTY não é rapidamente assimilado; nas primeiras histórias em quadrinhos
é grafado com "i" em substituição a “y” na primeira vez que expõe no
Salão Nacional de Belas Artes (1942), no catálogo seu nome é Pory, na
"Exposição de Arte Moderna "de Belo Horizonte, o Poty está correto mas
aparece um Carlos que não existe. Como vemos, o nome tem mais resistência para
ser aceito do que a sua obra, logo louvada.
O desenhista ilustrador
Quando vai trabalhar em jornal em 1944 (Folha Carioca, RJ), o desenho já é
sólido, de claro-escuro definido, sem titubeios, mas creio que a lida do jornal
requisitando desembaraço, convivência gráfica com as letras impressas e captação
do sentido plástico do texto, muito contribuiu para que seu dizer em desenho seja
tão gráfico e decisivo, possibilitando comunicação instantânea. Trabalhou ainda
como desenhista do texto literário, ilustrando Carlos Drummond de Andrade entre
outros, da crônica policial, etc. Em 1945 - Diretrizes, RJ; em 1946/8- Joaquim,
Curitiba, PR; em 1948/9-0 Jornal, RJ.
POTY LAZZAROTTO: “Guarda-freios”, gravura em metal, ponta-seca, 1944.
Antes de tudo o desenho
O desenho em Poty é a base de toda a sua obra. É a espinha dorsal do gravador,
quer seja o calcógrafo, o xilógrafo ou o litógrafo, ele marca sua presença
fundamental no muralista, no escultor. Em tudo que sua mão executa sua bússola
criadora sempre aponta o desenho. Antes de tudo é um artista que se expressa
pelo desenho de forma espontânea, que faz parte de sua vivência física. É dele
que parte para a criação de toda a sua obra de diferentes técnicas em que
emprega materiais diversos para seu dizer. Artista de retenção visual rápida
que guarda em memória privilegiada, habilidade e facilidade manual, desenha
como respira, de modo natural, espontâneo, sem apelos ao raciocínio para
resolver problemas técnicos ou estéticos O desembaraço do seu desenho permite-lhe
realizar escorços em suas figuras sem tirar a naturalidade de seu comportamento
corporal. Na "descida da cruz", (50) a figura de Cristo e dos demais
que o retiram dela ainda mostram rigidez de forma e movimento, mas quando
representa o “guarda freios" (chapa pequena), (113) ou quando retrata, por
diversas vezes, os operários, tudo é singelo e sem afetação.
Seu modo de ver e traduzir plasticamente
Seus olhos, ao verem uma cena que o toca plasticamente, funcionam fotograficamente
vendo o conjunto e o detalhe de uma só vez. É o flagrante de reportagem que o
interessa, É o instante com o movimento exato, essencial, a sua convivência que
capta, ignorando o detalhe inútil que iria atenuar, ou até amordaçar, o que
quer dizer (22, 48, 52).
Essa sua realidade não usa qualquer aparelho além de seus olhos e seu sentir,
não se estriba na forma, no detalhe ou até no movimento fotográfico, o seu ver
é sempre dinâmico; o instantâneo foto-cinematográfico que seu olhos apreendem
serve para descrever, expressar as figuras de seus desenhos, compor os cenários
em que elas vivem, ver os animais e objetos e fazer com que todos convivam em
harmonia plástica. Com grande poder de síntese sabe definir em poucos traços uma
situação, analisar um caráter. Tudo está focado apenas no essencial, para um
contar mais direto. É o cão hidrófobo (7), magnífico retrato de expressão
animal; o guarda-freios contra o vento (42); o homem lavando os pés dentro de
seu cenário perfeito (54); a mão do trabalhador que sai do bueiro e o gato, que
te prepara para roçá-la (47). Sua linha é fácil, corrida, fluida, que se
exprime continuamente pelo que não diz, que deixa espaços para a imaginação,
para a complementação, que não acaba de falar porque ainda tem muito a relatar.
Linha em cima de linha (quatro braços, duas cabeças, relembranças dos desenhos
infantis em cima de estampas impressas?) para reafirmar, para dar movimento,
para corrigir, mostrando de modo desembaraçado que o homem não é infalível, nem
mesmo o artista. Seu trabalho nunca é miniatura, o pequeno não conta, o detalhe
descritivo não existe, só aparece para formar um todo, como o próprio Poty, se
expressa num falar rápido, sintético, de análise direta e conclusiva.
O retrato de seus personagens
As figuras que representa são do homem real, que não usa sabonete ou pente para
posar, que não se maquila para parecer mais belo ou mais miserável, os
figurantes de seus trabalhos estão plantados na terra, por isso os pés têm
tanta importância. Enquanto outros olham
de longe seus personagens, vêem suas formas externas, ele tem necessidade de
viver suas vidas, exprimir o que está representado dentro pela forma exterior,
por isso seus desenhos são sempre fieis. O amor a seus semelhantes é sempre reafirmado.
O social está sempre presente mas não de forma panfletária. Há que sentir para
criar. Mostra nas vivências da infância em Capanema em "Curitiba, de nós”,
texto de Valêncio Xavier, Fundação Cultural de Curitiba, edição Paiol, 1975;
para o álbum "30 desenhos de Poty", edição DNER, percorre toda a
antiga BR-2 (hoje BR-116), assim ele também conhece e convive com todos os
personagens retratados em sua obra. O social por ele abordado, com olhos de
carinho e amor para o garoto, o sorveteiro, o distribuidor de pão, o
trabalhador de rua, as polacas vendendo verdura, o limpa-chaminés, o homem
arando a terra (mostrados em “Curitiba, de nós"), é traduzido plasticamente
em claro-escuro violento, que dá possante vigor no desenho referente à paisagem
rodoviária. As meias tintas, o ameno, não tem lugar de destaque em sua obra
gráfica.
Caráter de seu desenho
Nos raros casos de desenhos mais trabalhados, Poty mostra-se um artista que
sabe dominar o material que usa. As suas melhores obras são realizadas em preto
e branco, a tinta agredindo o papel alvo, em traço ou chapada, na ânsia de
transmitir mais dramaticamente as vivências. Não há um desenho com características
dessemelhante do seu desenho comum quando este se destina à gravação no metal; ao contrário, na xilo ele é de curvas fluídas
tomando feição mais decorativa, talvez devido à sua técnica de cortar a madeira.
Bolsa de estudos
Ao viajar para a Europa, em 1946, com bolsa de estudos ofertada pelo governo
francês, Poty soube expressar-se plenamente na gravura em metal, é um artista
que domina com facilidade o desenho e logra que este chegue ao papel sem que a técnica
calcográfica limite o seu exprimir direto e simples, Para ele, recursos
epidérmicos de superfícies bonitas não são necessários, pelo contrário, só poderiam
prejudicar o seu contar cru. Através de sua arte sempre conta a sua vivência, reminiscência, pessoas,
fatos, ambientes, objetos, animais, sem que a técnica faça sombra à emoção. Em
1950, quando ensina litografia e gravura em metal na Escola Livre de Artes
Plásticas em São Paulo, há uma frase de Marcello Grassmann, que muito o sensibiliza:
"Poty passa adiante o que está aprendendo".
A sua bagagem técnico-artística é a ponta seca, a água forte e a água-tinta da
gravura em metal e um desenho sempre prenhe de calor humano. Viajavam com ele dois olhos vivos que sabem
ver instantaneamente o todo e o detalhe necessário, desprovido da minúcia que
embaraça o seu modo de se exteriorizar em obra de arte. Sua personalidade sabe
captar o acontecimento, aprimorado em sua passagem pela ilustração-reportagem
feita para jornais e transmitido em linguagem pessoal, para isso a técnica que
tem até então é integralmente satisfatória.
Mas é pessoa sempre ávida de mais saber, como aos quatro anos aprende a ler
para poder decifrar as letras de velhos "Eu sei tudo”; é homem de
compromisso e está com bolsa de estudos. Sente necessidade de um vocabulário
técnico mais amplo, pois ainda não disse tudo e muitas outras coisas novas terá
a revelar. Chegando a Paris matricula-se na Escola de Belas Artes e frequenta
as aulas de gravura em metal com o professor Cami, xilogravura com Gallamis e
litografia com Jaudon.
Trabalhos em litografia
As primeiras litografias são obras de grande formato e retratam lembranças da
viagem de navio, Estampas de claro-escuro contrastante com descrições, pode se
dizer, detalhadas, do convés do navio, Há o detalhe sem haver o pormenor, como
sempre acontece em seu trabalho. A obra litográfica caracteriza-se, como em
outra técnica à ponta seca, por dar ênfase ao preto de tinta gordurosa em
contraste com o branco do papel, as meias-tintas, os cinzas, quando presentes,
portam-se com timidez. Continuamente
aparece a linha raspada sobre o preto (97) que, quando unida, funciona como
valor (83). Numa lito encontramos valores de textura (123), em outras o traço,
sem continuidade de forma, enrola-se em tons diferentes, sobrepostos sobre si
mesmos (154, 164). Há uma peça única no conjunto, quer pela técnica de tinta
gordurosa trabalhada liquida com pena, ou pelo estilo do desenho, com as figuras
das mulheres dirigindo-se ao bloco de cabeças masculinas que se vê em 1º plano,
através de frases escritas dentro de balões, à maneira das estórias em quadrinhos.
As impressões de viagem traduzem o
sabor, a curiosidade da primeira grande jornada por cima de água. A obra litográfica
se compõe ainda de trabalhos descritivos (Monumento do tropeiro), de peças
ilustrativas (A visita do velho senhor), retratos, série Bahia, Mangue; poucas
reminiscências infanto-juvenis aparecem. O aprendizado europeu não tem importância
maior no seu modo de transmitir-nos a sua criatividade, a não ser uma maior
continuidade de linha, curvas mais amplas e na xilo um decorativismo, nunca
antes percebido em sua obra.
A xilogravura
É na Europa, como acontece com a lito, que toma contato com a madeira. Observa
mais as aulas do que pratica, executa umas das xilos. Seu caminho de gravurista vai do metal já praticado, como sabemos, com pleno
fazer técnico e artístico no Brasil, à maneira. São maneiras totalmente
diversas de se exprimir; enquanto no metal o artista trabalha a linha (o
preto), na xilogravura ele retira a madeira (o branco) em volta do traço, para
que esta se destaque em relevo e retenha tinta aplicada pelo rolo.
A xilogravura tem um modo completamente inverso de traduzir o desenho para ser
lido graficamente, é inteiramente diverso também no material usado. Assim, de
modo geral, quando o artista usa essas duas linguagens não fala de modo idêntico
ao dizer sua criatividade
Quando Poty passa a trabalhar também com a madeira, seu contar se mostra mais
permeável às influencias folclóricas (bonecos de barro), literárias,
decorativas (as curvas mais amplas, plenas, sem quebras, a reta quase
desaparece; o desenho mais escoimado de detalhes). As figuras são descritas de
modo mais geral, sem o detalhe que lhe dá profundidade psicológica; o cenário
desaparece de suas xilos.
Para confirmação do que está dito acima vejamos outro exemplo: Marcello
Grassmann tem caminho idêntico, embora inverso; de uma xilo decorativa
(analisada dentro de sua obra) passa, a
conselho de Goeldi, a praticar o metal, onde logo se expressa com marcado vigor.
A madeira, no freando inteiramente o gesto, como no metal, permite que a habilidade
manual de Poty nos chegue mais claramente através da xilo. Ela, com seu amor mais profundo do que o metal,
aproxima o Poty-gravador do Poty-escultor e é jornada para a decoração mural em
madeira, para a talha, a que ele sempre chama de madeira gravada. Observemos que esta madeira gravada/cavada do
mural ou da talha pode ser impressa e funcionar como xilogravura.
POTY LAZZAROTTO: “Barbearia”, gravura em metal, ponta-seca, 1943.
Sua técnica de impressão, gravura em metal. Década de quarenta.
Quando deparamos com a obra gravada de Poty da década de quarenta, seu inicio
gráfico, logo chama a atenção ao nosso observar a maneira de como são impressas
suas cópias. Para o amante (iniciado) da gravura em metal, habituado à aceitação
mais corrente da cópia impressa a palmo, estas estampas causam certa estranheza, sendo muitas vezes os
cinzas e até o preto (estes sempre gravado
nas estampas de Poty) nelas obtidos, atribuídos não à técnica de impressão, mas
a água-tinta sulcada na chapa.
Seu mestre Carlos Oswald sempre tirou partido das veladuras deixadas propositadamente na chapa pelo impressor e
transferida ao papel pela pressão da máquina calcografica, exercida sobre este
papel de encontro à chapa entintada.
Devemos sublinhar, para justa avaliação, que as cópias antigas das gravuras de
Poty foram impressas em papel que não chega a ser ideal para a impressão de
gravura em metal, que a tinta nacional não era das mais convenientes e ainda,
que todos os resultados da estampagem foram obtidos com a chapa a frio e apenas
com o emprego da tarlatana.
Observarmos ainda que este deixar tinta, nas partes não gravadas da chapa,
serve esplendidamente ao propósito de enfatizar o vigor de sua ponta seca, acentuando
seus pretos e também, quando favorece e destaca a veladura formada pela tinta
retida na rebarba do traço cavado diretamente com a ponta da agulha, sem auxilio
de reagente químico que rebaixa sem deixar, na chapa, vestígios do metal
gravado. Me parece um bom momento para dar duas ligeiras palavras sobre a técnica de
impressão de veladura e de como estampar a palmo.
Para a impressão calcografica, a tinta a
ser transferida ao papel, deve ser retida, ao contrário da gravura em relevo,
nas partes baixas da chapa. Para isso essa tinta é colocada em toda a chapa, nas
partes altas e baixas e depois é retirada com um pano de urdidura larga, como a
tarlatana, que, cobrindo a mão espalmada, é esfregada na superfície para
retirar a tinta das partes que podem ser atingidas, as altas. Os sítios sulcados
retém a tinta que é passada no papel mediante compressão da prensa
calcografica.
Com técnica conveniente o impressor pode deixar tinta em partes não gravadas, possibilitando-o a estampar cópias com gama
infinita de cinzas e ainda reforando os pretos gravados. São as veladuras tão
difíceis de serem repetidas numa segunda cópia, por isso valorizando a cópia em
si e também quase que exigindo que o impressor
e o artista sejam a mesma pessoa.
Quando se quer uma impressão em que
só o local gravado apresenta-se na cópia, sendo os brancos totalmente limpos,
deve-se realizar uma retirada de tinta final com a mão nua, despida de qualquer
pano ao papel. É a impressão a palmo.
Toda a impressão da primeira parte da
gravura de Poty é feita por ele próprio tirando partido das veladuras, registremos
apenas duas: "A fundição” (9) e "A família (54). Nas impressões
atuais não utiliza mais o recurso da veladura, os cinzas impressos são os
gravados na chapa. Como exemplo vejamos o mesmo "Lava pés (53).
É conveniente ainda mais duas palavras sobre técnica
A ponta seca é o processo mais simples entre todos os outros da gravura em
metal: resume-se a riscar numa chapa
polida, com uma agulha, o desenho que se quer gravado; à margem destas arranhaduras
fica o metal retirado do sulco e que vai reter alguma tinta e dar característica
ao traço aveludado.
Este risco é de pouca profundidade. Poty
descobriu um modo de tornar este traço mais cavado; em substituição à
tradicional ponta em bico (agulha) usa uma com a extremidade biselada, como a
usada na gravura a buril. Esta ponta, segura com a mão esquerda. A ponta faz sulcos
mais fundos e consequentemente, deixa rebarbas mais evidentes. Diz ele que quem
lhe sugeriu esta técnica foi Hans Steiner a quem apelidou de "São
Francisco da gravura”. A agressividade
técnica destas gravuras adivinha-se o futuro escultor.
POTY LAZZAROTTO: “Fila das seis”, Prova de Estado, gravura em metal, ponta-seca, 1944.
A unidade da gravura
As gravuras sempre têm grande unidade plástica “dentro de cada estampa sente-se a coesão total entre o desenho apropriado, a composição precisa, o claro-escuro denso; e o tema, que é tratado sempre convenientemente, com os personagens em posturas corretas e espontâneas, em cenários condizentes com o que a gravura quer exprimir. Os traços são mais explorados, unidos e sobrepostos, para formar o preto e cinza, do que isolados, valorizando a forma linear, Esta unidade em sua gravura em metal é facilitada pelo quase nenhum emprego da textura, estando essa totalmente ausente de sua obra quando de efeito epidérmico.
Uma de suas escassas gravuras em que a textura é um pouco mais evidente é
"José le Bhan” (71), Para aquilatarmos a relativa importância desta
textura é bom comparar com os estados (69,70) onde verificamos que a água
tinta, anulando o fundo branco e tirando a espontaneidade de uma chapa mal
polida, nada acrescenta ao vigoroso desenho e até o granulado do pescoço serve
para atenuá-lo.
Em Poty notamos que a docilidade não facilita o seu dizer criativo, a
habilidade do artesão, quando freada
pela resistência do material, explode em vigor; referimo-nos preferencialmente
à ponta seca. É a fibra do homem artista lutando contra a matéria que se
antepõe ao seu exprimir. A ponta seca na sua obra representa o dizer direto,
sem artifícios, muito ao seu modo de ser, por isso é tão expressiva e tem lugar
de destaque entre suas outras gravuras.
No seu caso, o esforço de sulcar
aprimora o desenhista, ensina-o a trabalhar com o silêncio, a dizer com o não
dito. Educa-o a falar só com as formas essenciais ao expressar, sem nenhum
arabesco decorativo, a abstrair o que distrai do principal.A dificuldade, na ponta seca, do
traçar a linha curva faz com que se exprima por planos de profundo preto e
linhas soltas que descrevem um gesto (as figuras em fuga de “Cão danado” (7),
um objeto (as malas de “Vagão de trem noturno” (21). A disciplina do metal,
refreando o dizer rápido de seu desenho e aprimorando-o, torna-o mais profundo,
sem tirar a espontaneidade do instantâneo.
Em síntese, sempre que sua
facilidade manual é contida seu trabalho expressivo ganha mais impacto. Não
estou negando ou comparando (é outra coisa e deve ser vista com outros olhos
intelectuais) séries de águas-fortes/águas-tintas dos casarios e barcos da
Bahia ou dos matadouros que são realizadas, respectivamente, com olhos do
coração e murros de mãos fechadas.
Gravações com emprego de ácido
Nas águas-fortes, como em todas as demais gravuras, a técnica não se destaca; sua
função é a de servir ao seu desenho mas conferindo sempre ao mesmo as características
inerentes à gravura. Muito raramente o desenho, quando a estampa é impressa, se
impõe à gravura (é o caso de 106). A água-tinta, quase sempre de grão fino, é
colocada apenas para dar valores de cinzas e pretos à água-forte e ponta-seca
(91,67), o emprego do grão de resina mais grosso aparece muito raramente e em
geral é discreto (109), Outras técnicas, como “roulete" são difíceis de
encontrar (77,136).
As gravuras da Europa
O estudo na França, quando de gozo da bolsa que ganhou, foi mais voltado para a
observação, a anotação, do que para a realização.
Depois de um período de quatro anos trabalhando febrilmente na gravura em
metal, nada melhor que uma pausa para pensar e também em favor de assimilar o
recebimento de um maior saber técnico.
Os conhecimentos básicos de como lidar com as pontas, a tinta, o papel, o
ácido, os vernizes e ceras Poty tinha; faltava lhe um maior aprofundamento no
relacionamento com o material já conhecido e o descobrimento de novas
possibilidades.
Em Paris faz somente umas duas
gravuras em metal, sendo uma destas cavada em técnica nunca usada por ele,
antes ou depois. É um buril, (62) com água-tinta para dar ligeiro cinza, com
nítida feição humorística – que mostra um homem segurando com as duas mãos, à
altura do rosto, uma calcinha enorme de mulher - ; a outra gravura é uma
água-forte, (61).
POTY LAZZAROTTO: “Série Bahia”, gravura em metal, ponta-seca, 1950-51.
As séries
No conjunto de sua obra algumas séries destacam-se entre as demais, quer pela
qualidade e quantidade de vezes e ângulos com que é abordado o mesmo
sentimento, o mesmo assunto abordado o mesmo sentimento, o mesmo assunto.
Logo de início temos que olhar,
porque a série nos obriga a isso, para as reminiscências recentes de um jovem
(1942, 18 anos, recém chegado ao Rio de Janeiro) que eclodem em borbotões. A
sua primeira gravura é um pinheiro (1) com um espantalho, talvez para espantar
o passarinho da tristeza para que não cante e traga saudade. - Esta placa está
acabando de ser retrabalhada, é a viagem de Rembrandt a velhas e queridas
paisagens, vistas por outros olhos, que o duro oficio de viver ensinou (ou
condicionou?) a ver diferente. As lembranças, ainda quentes (trabalhos feitos
antes de sua viagem à Europa) de realidade visual, estão gravadas, curvadas,
inseridas no metal com força, vigor, energia no esforço de dizer claramente à
sua gente e também a nós, de sua saudade. Vejamos a série ferroviária (37, 21, 42,13 etc.), Está ai todo um panorama,
trens parados num desvio a que chamou "Paisagem"(13), "Interior
de trem noturno” (21), o "Guarda-freios (42) e o delicioso "Desvio"(37)
com duas crianças sentadas conversando, enquanto olham o vagão sendo carregado;
certamente uma das crianças é o próprio artista.
Impressão do Rio
Mescladas com estas estampas aparecem as impressões do Rio. É o “Morro” (73) da
favela da Central do Brasil, com o detalhe preciso de uma pipa presa a um fio
da rede elétrica; "Macumba"(121,43), lito e metal com imagem idêntica:
"Fila das seis" (35, 36), um retrato cinematográfico, lá estão as mulheres que conversam, os homens que lêem
jornal, o aleijado, o homem na ponta dos pés cobrindo os olhos contra a luz
para ver melhor, o caminhão que passa, o cachorro que se coça, são 24 figuras
como o artista numerou nas margem do papel de um dos estados desta estampa; o
"Bonde"(46, 48) em que se sente que ele está fazendo uma curva etc...
São gravuras, como as demais desta época, de claro-escuro vigoroso.
POTY LAZZAROTTO: “Vendedora de flores”, gravura em metal, ponta-seca, 1949.
Os trabalhadores
Os trabalhadores também são olhados: os carregadores que com esforço tentam
fazer um caminhão sair do atoleiro; os sopradores de vidro (22) com o flagrante
do menino carregando um balde e o equilíbrio do corpo inclinado com o braço
esquerdo afastado de perfeita observação (esta chapa está atualmente refeita (184) e
foi cortada do lado esquerdo e direito, o menino do lado direito do impresso
foi eliminado); os sapateiros (12), um primor de movimento, mostra o desenho
das três figuras.
Outra série é a dos trabalhadores do fogo:
o "Foguista, 1942, (33), a luz emitida da fornalha aberta, para
receber a lenha, ilumina violentamente as figuras; outra fornalha é
representada na gravura "Caldeiras" (65, 66), é uma vista panorâmica
das fornalhas do Desirade, navio em que viajou em gozo de bolsa de estudos para
a Europa. Feita no Brasil depois de sua volta, seu desenho se mostra
estilizado, a curva tem destaque em sua feitura. Esta mudança ele trouxe da
viagem; em duas fundições (9,91) a segunda posterior, usando as técnicas de água-forte
e água-tinta, tem um desenho mais solto em que predominam as curvas; a primeira
é uma ponta seca.
POTY LAZZAROTTO: “Descida da cruz”, gravura em metal, ponta-seca, com interferência de água-tinta e monotipia, 1945.
Série Sacra
A 11 de agosto de 1945 tem início a sua série sacra, é uma "Deposição de
Cristo” (50); no 1º estado, pouquíssimos
traços indicam um esforço violento em que se sente o esforço dos homens para
descer da cruz o corpo morto. Esta gravura, como todas antes de sua viagem à Europa,
tem tratamento realista. O restante da
série Sacra, feita mais tarde, se exprime com o desenho mais estilizado (210,
155, 156, etc.), mais inspirado na imagem dada aos santos pela escultura
religiosa, da qual tem uma coleção particular, do que no homem que convive
conosco. Estas gravuras estão feitas com sentido escultórico. Há uma bonita peça,
"São Cristóvão (159), cópia impressa por Fernando Calderari, ponta seca de
pretos violentos, com os traços bastante profundos, só com volumes, sem linhas
de contorno.
Retratos
Nova série se inicia neste período fecundo, 1942/45; são retratos que, já nos
primeiros anos, são capazes de definir o retratado em seu caráter visual e
psicológico: poucas peças, em geral de formato grande. Ao contrário de seus
Santos (comparem com a cabeça de Santo Antonio (115, lito), sente-se nestas gravuras
a fidelidade naturalista do autor ao modelo, ainda o respeito pela sua
personalidade. São diferentes as
individualidades de Lysete (84), José le Bihau (71), Pancetti (83, lito, este
retrato também foi feito em metal), Barão de Itararé (38), Livio Abramo (81),
etc.
Gosta de retratar os colegas e amigos mas ao viajar para a Europa não é o
capitão do navio que procura; escolhe o foguista José le Bihau para realizar magnifico retrato.
Outro magistral retrato é o de uma vendedora de flores (86, 87). É interessante
constatar que nunca se auto-retrata nas gravuras em metal.
Navio
A viagem no navio "Desirade” fornece-lhe motivo para diversas gravuras, são
marinheiros se movimentando em trabalho ou posando; tendo, multas vezes, por
fundo o próprio navio, convés, chaminés de respiração, escadas, etc.
O mesmo navio é personagem por si só de duas gravuras (68, 67) que são
verdadeiras naturezas mortas, me parece que as únicas em sua obra. O convés
mostra-se deserto, exibindo suas chaminés de respiração, cordas, máquina, etc.
e até prosaicas cadeira e mesa. O artista também representa a fornalha do navio
em outra gravura (65, 66), desta vez o ambiente é povoado de maquinistas,
foguistas e homem em trabalho.
POTY LAZZAROTTO: “Série Bahia”, gravura em metal, ponta-seca, 1950-51.
Bahia
As gravuras feitas na Bahia olham o
regional, o casario, os barcos, o mar, a capoeira. O homem tem espaço restrito nelas,
faz apenas parte de paisagem. Esta série é aquinhoada com algumas boas litos (99,
97, 98), são barcos vistos do mar num preto-branco violento, quase sem cinzas,
linhas brancas são traçadas no preto mais intenso por raspagem, revelando a
forma escondida dentro do escuro.
A maior parte destas gravuras são abertas
sob o metal e se compõe de peças de linguagem técnica mais elaborada, de ponta
seca escassamente representada, a grande maioria têm técnica mista, combina o
traço da água-forte ou ponta seca com água-tinta.
Encontramos gravuras de técnica descontraída (101), verdadeiros croquis e
trabalhos em que o desenho, o claro-escuro, as linhas da água-forte ou os
pretos e cinzas da água-tinta são mais cuidados; são estampas também de maior
tamanho (109). Numa destas peças, mais
trabalhadas, o homem tem evidência maior: é uma capoeira (129) de traços nervosos
e um cinza da água-tinta envolvendo toda a cena. Inúmeras estampas desta série
estão nuas de gente.
A morte
No início de sua obra, entre 1942 e 1945,
ela é representada de "corpo presente”: os pés do defunto em primeiro plano, sendo
velados à luz de vela; a entrada do cemitério com guarda-chuvas abertos; os
coveiros em trabalho. A representação, de acordo com o seu trabalho à época, é
cruamente exposta em expressividade plantada em terreno de realismo visual.
Depois de década de 50, também segundo seu caminho artístico, representa a
morte de forma mais simbólica por intermédio do esqueleto, às vezes em atitudes
caricaturais ou humorísticas. Os escuros não fazem parte destas peças.
Registro
Algumas estampas de Poty podem ser chamadas de documentárias, fazem parte de um
álbum que serviu para consignar a construção do Monumento ao Tropeiro, obra mural
em pastilhas, situada no trevo de acesso à Lapa, em Curitiba. São todas feitas em
litografia (161 a 165). Têm o valor de registro. Devo incluir nesta série as
gravuras feitas com estudos realizados no local, para "Canudos", de Euclides
da Cunha.
Série Matadouro
As gravuras inspiradas num matadouro de abate de bois (Bahia) são peças em que
o artista, apesar de representar sempre a mesma cena, consegue uma grande variedade
no desenho e na composição. Para se expressar nesta série usou a gravura em
metal, cavando-a com o ácido na técnica de água-tinta e água-forte (136, 137,
138). Algumas destas chapas estão sendo retrabalhadas (204, 137).
POTY LAZZAROTTO: “Off limites”, gravura em metal, ponta-seca, 1948.
Série Mangue
Nesta série, Poty fala, às vezes, com linguagem naturalista (122,60,59); em
outras, de forma estilizada (160, 150). Uma lito (125) recebe tratamento decorativo
no detalhe das cortinas caídas sem nenhuma prega. A particularização decorativa
é rara na obra do artista. A composição
geralmente é equilibrada entre a verticalidade das portas e figuras em pé e as gelosias
das janelas e portas. A diagonal aparece raramente e não tem importância maior.
As ilustrações
Há gravuras em metal destinadas a ilustrar textos literários de escritores como
Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Machado de Assis, etc,, que podem ser juntas
numa série.
Os moradores das gravuras de Poty
O povoamento de suas gravuras é feito com atilada observação. Por povoamento
estou me referindo ao desenho que representa o homem e o ambiente em que vive
(cenário), os animais, as casas, etc., que o artista usa para se exprimir. Em
suas gravuras o homem é sempre tratado como personalidade individual, visto nas
vinte e quatro horas do seu dia, no trabalho (9, 42,66), na volta para casa (21,
36), ou já em seu lar (54). No trabalho
(25) ou no lazer (129), o homem representado nunca é o que una paletó e gravata,
o enfeitado para ir a uma festa, ele sempre cheira a suor.
Se o homem recebe a mirada profunda do artista, o cenário que vai servir de sua
morada permanente (no caso da obra de arte realizada) não é negligenciado (36,54,48
66,144), A observação precisa valoriza o ambiente, o espelho quebrado da "A
barbearia (727), ainda nessa chapa o chapéu sobre a cadeira enquanto o freguês espera em pé e a cadeira
com adaptação ao serviço de barbear; a bola esperando o conserto no Sapateiro (712),
a mão saindo do bueiro no "Bonde” (48), etc. O cenário ermo também tem lugar
em sua obra; logo nas primeiras gravuras temos a linha férrea (13) tão de seu
agrado; mais tarde, quando e depois de uma viagem à Europa, ficam-nos as cenas
do navio (71, 67) e os casarios de Canudos e da Bahia.
Os animais
Especial atenção têm os animais, desde o elefante de "O picadeiro (14)
(1943) à observação mais aguda dos cavalos de "Desvio” (37), da série do Monumento
ao Tropeiro (161 a 165); dos bois de toda a “Série Matadouro” (136 139); do cão,
que tem lugar de destaque, ele é representado em diversas situações o "Cão
danado” (7) afugentando os homens, o cão observando a briga dos garotos e pronto para
fugir (147),o cão bebendo água do passeio enquanto os vagabundos embriagados comem e bebem, o da "Fila das seis” (36) que se coça
despreocupadamente; as pombas de São Francisco (173) ou o passarinho na gaiola (27),
algumas das poucas aves que raramente aparecem em sua gravura. Constatamos,
convivendo com a sua obra, que seu céu está sempre deserto de aves. Seus
pássaros não voam.
Possíveis influências
Estudar influências na obra de Poty não é tarefa fácil. Artista intuitivo, deixa o seu trabalho ser
conduzido pela emoção, sobretudo antes de sua viagem à Europa; a carga de educação
intelectualizante que assimila é bem reduzida. Sua visão é formada, quase que
exclusivamente, pela observação direta e não através de obra de outros artistas.
A primeira pessoa que o acompanha artisticamente no Rio de Janeiro é Augusto
Rodrigues, mas sua ascendência é mais de vivência artística e não traz
contribuição ao trabalho de Poty.
Em "Decida de Cruz” (50) vislumbramos influência de Rubens através de
Rembrandt. Depois da volta de Europa
encontramos a arte de Poty mais intelectualizada, mais permeável a
contribuições.
Podemos ver, em seus Santos, a influência da escultura em geral, da barroca em
particular esmiuçando mais, de Aleijadinho. Distinguimos também, com certa nitidez,
influencia folclórica, por meio dos bonecos de barro do Nordeste.
Lasar Segall também pode ser
adivinhado, especialmente na série dos Navios, quando são vistas figuras de
marinheiros e chaminés de respiração; mais longinquamente na série
"Mangue".
POTY LAZZAROTTO: “Trabalhadores”, gravura em metal, ponta-seca, 1949.
Maturidade
Com as chapas retrabalhadas Poty mostra-se em plena maturidade de gravador São
38 anos de carreira. É a maturidade que permite que o dizer do artista seja
mais natural, seja emitido com maior convicção. Ela possibilita o convívio
desinibido do artista com seu vocabulário material (que usa para se expressar)
e também um diálogo franco com o seu eu mais profundo. O gravador Poty tem a
maturidade nas mãos, servindo-lhe como ferramenta para abrir as suas chapas.
Retorno sentimental
Nestes trabalhos Poty está fazendo uma visita sentimental ao seu passado;
segundo o seu dizer, é uma avaliação, é um rever, com outros olhos, das mesmas
paisagens.
Uma das primeiras chapas escolhidas para ser recriada foi o "Pinheiro” (1),
sua primeira gravura aberta no metal (1942). Este exemplar serve otimamente
para saborearmos o novo ver do artista. Os pinheiros do primeiro estado da
gravura primitiva recebem, quando a gravação pronta, um espantalho. Para poder
retrabalhar esta gravura Poty cria uma névoa que esconde (destrói) o desenho, é
a diluição do passado.
Com o desenho amortecido, recria a estampa, que se mostra bastante idêntica
à primeira de 1942, a recriada com
vegetação mais evidente e abundante, mas o "ontem" ainda está mais
presente do que propriamente o “hoje”. Numa segunda versão rebaixa novamente o
desenho e regrava uma visão mais atual, com os pinheiros desenhados de forma
estilizada; o espantalho, só com os traços essenciais, mostra a palha que sai
de sua roupa, o chapéu que usa é mais atualizado. Há um detalhe importante, seu
braço direito atinge e transpõe o limite esquerdo da chapa (177).
Sua segunda chapa também é mais do
que trabalhada; é recriada. Na imagem da gravura original (1942) os bêbados
cantam “Fora de compasso” (2,3). Agora na cópia recriada (1980) o que vemos é
acentuado por contrastantes pretos; o desenho é simplificado, duas figuras não
têm mais rosto, a garrafa e dois copos destacam-se devido à perspectiva
diferente da mesa. À ponta-seca foi acrescido grão granuloso gravado em
água-tinta.
Outras chapas retrabalhadas
Uma outra de suas gravuras iniciais (possivelmente a terceira feita) segue o mesmo
caminho de recriação dos pinheiros. Numa primeira chapa pouco muda (181). Os pretos tornam-se mais densos cobrindo os
personagens; o desenho é esquematizado. Os figurantes continuam os mesmos, mas
com visão mais plástica do que antes, discutindo em torno de uma mesa de jogo,
A chapa retrabalhada que transmite a recriação final (182) do artista é bem
diferente. As figuras têm mais movimento, um simples virar de cabeça ou braço
estendido possibilitam isso. A simplificação é decisiva, no desenho e na
eliminação de quatro figuras.
A linha reta domina o quadro, os escuros da segunda etapa são abrandados. Vemos,
nesta gravura, a ponte que liga seu estilo passado com o do presente. As duas
figuras do 1º plano são o que restou do naturalismo já ultrapassado. O
“Guarda-freios", explorando o motivo ferroviário tão querido na sua 1ª
fase, também uma chapa recriada. Na primeira imagem é uma das gravuras de
claro-escuro mais simples (42), o desenho está pleno de observação, o vento é
sentido no homem sentado segurando o boné, nas roupas dos dois homens, na
inclinação do corpo. Para a recriação o artista elimina uma figura raspando-a
(185), (no estado impresso podemos ver o andamento do seu trabalho), também um
sol é acrescentado ao desenho e os escuros do homem em pé são mais violentos.
Mas, como no desenvolvimento dos trabalhos comentados anteriormente, vemos o
artista caminhar para um claro-escuro acentuado e desistindo deste; partir para
o estudo evidenciando a forma. Na recriação derradeira desta estampa o sol se
transforma na saída de um túnel, o vagão da frente, antes visto parcialmente é
eliminado junto com uma das figuras, o homem contra o vento perde toda a
violência dos escuros A água-tinta posta serve para suavizar toda a cena
centralizada na figura do homem em pé (186). Outra recriação que também queremos
comentar é “A família"(54), que passa por fase de simples repensar, ao
passo, do assunto, mudando pouco, para chegar a uma transformação radical.
O cenário é eliminado, as figuras, de contornos fechados, são fortemente
estilizadas (apenas a do primeiro plano conserva muito de sua forma original),
o gesto tem mais importância que o dizer. A perspectiva da bacia em que o
personagem do 1º plano lava os pés é respeitada, mas a da mesa é totalmente
deformada. Não nos é possível, como elas merecem e seria do nosso gosto, nos
aprofundarmos mais na análise destas e de outras chapas recriadas.
Uma nova imagem
Temos ainda para comentar uma imagem inteiramente nova. Sintomaticamente é um
São Francisco (175), tantas vezes representado em sua obra. Tratado de forma estilizada,
em planos definidos, mostra tristeza e bondade. É um Santo conformado, apesar
de seus lábios cortados com decisão, revelando energia. Estampa que transpira
humildade, acentuada pela ave que pousa no ombro do Santo e, como ele, também
nos olha.
Gravuras recriadas
As gravuras recriadas mostram maneira de atingir e criação totalmente diferentes
das pontas secas de 1942/45. As antigas pontas-secas de Poty, como podemos constar
através dos estados, revelam, desde o início, a determinação final do artista.
Ele sabe o que quer, o resultado da chapa terminada é visível dentro dele mesmo
antes de iniciar a gravação. Estas pontas-secas são construídas de degrau em
degrau, aos poucos, traço a traço, figura a figura. (Os estados que o artista
gravador imprime de seu trabalho são ótimos para revelarem o modo de seu criar.
Passo a passo, eles nos dizem das decisões, da timidez ou audácia em conduzir
composição, o desenho, o claro-escuro. Enquanto as pontas-secas falam com o
instinto, as gravuras recriadas, feitas em 1980, dizem mais com o raciocínio,
sem ausentar a emoção. Esta está presente em escultórica pietá, "Nossa
Senhora com filho ao colo” (208, 209) em o caminhão sendo empurrado etc.
Síntese
Nas chapas retrabalhadas/recriadas vemos uma determinação maior no fazer,
simplificação do desenho por estilização de linha, por eliminação, por
abrandamento do claro-escuro, há mais atenção ao gesto (plástica) do que à fala
(literatura); o dinamismo dado à chapa por corte, não para criar a forma da
figura aproximando-a da escultura, como antes, mas para eliminar o quadrado de
sua forma tradicional. Constatamos também a reunião, na mesma placa, de mais de
uma técnica; e ainda, que a mesma mensagem é dita com mais doçura, sem gritos,
com simples murmúrios.
POTY LAZZAROTTO: “Marcha fúnebre”, gravura em metal, ponta-seca, dec. 40.
Palavras finais
Suas recriações trazem um recado a ser meditado por todos nós, artistas e
amantes de arte; é a possibilidade do confronto do mesmo artista em épocas
diferentes pelo seu realizar. É a constatação do artista que (em vez de estar
repetindo sempre a mesma imagem, e/ou os vícios de habilidades técnicas, em
chapas diferentes através dos anos) tem a audácia de criar, com linguagem
inteiramente diversa, em cima de suas chapas . Caro Poty, tomo coragem para
pedir ao artista, que teve a ousadia de destruir gravuras que trouxeram tanto
sucesso ao seu nome, muitas mais destas recriações junto com imagens novas do
seu ver atual. Solicitar-lhe um conviver mais constante com chapas e pontas,
para que possamos usufruir de seu trabalho de gravador mais frequentemente.
Divagações sobre a situação da gravura no Rio de Janeiro entre 1914 e 1942,
quando do início gráfico de Napoleon Potyguara Lazzarotto, para contribuição à
compreensão e estudo de sua obra de arte. Para dizer da gravura de Poty no âmago
da gravura brasileira e ser compreendido, há necessidade de compor quadro
claro, se bem que essencialmente sintético por força do trabalho que ora
apresentamos, dos acontecimentos e pessoas que possibilitaram o nascimento de
uma gravura brasileira com essencial pujança para o aparecimento característico,
e de certo modo refinado, do artista gravador especializado. O artista que se
dedica tão somente à gravura de arte, sem mesmo, muitas vezes, um desvio para o
desenho com expressão independente.
O esquecimento e desconhecimento da memória não favorece a compreensão e o estudo
de gravura brasileira, por isso é indispensável conhecer o fato histórico para
poder estudá-la e compreendê-la na totalidade e mesmo no valor individual da
obra de cada artista. Este negar da memória serve para descaracterizar o rumo,
com valores estéticos e técnicos, que pioneiros dedicados à gravura iniciante,
como Carlos Oswald, Osvaldo Goeldi, Livio Abramo e outros, deram à gravura que,
por estar nascendo, tinha individualidade própria. O esquecer as raízes leva a
gravura brasileira às estradas da gravura internacional, aos caminhos do já
feito, do já realizado, da arte rotulada.
Em 1911 o Liceu de Artes e Ofícios sediado no Rio de Janeiro, estabelecimento
de ensino mantido pela Sociedade Propagadora das Belas Artes, está em plena
expansão. Neste ano são programadas novas aulas: oficina tipográfica,
impressão, encadernação, pautação e douração, cerâmica, gravura de medalhas,
zincografia, litografia, xilogravura e água-forte - atelier foi chamado de
água-forte mas se destinava a todas as técnicas da gravura em metal. Todas as
oficinas receberam o que havia de melhor em maquinaria, ferramentas e demais
materiais necessários a seu pleno exercício.
Para a compra, na Europa, de máquina impressora calcografica, chapas,
ferramentas, produtos químicos e demais aparelhagem foi encarregado Modesto
Brocos (Santiago de Compostela 1852 - Rio de Janeiro 1936), ele próprio gravador.
Espanhol de nascimento, em 1872 está no Rio de Janeiro para trabalhar em
jornal, como já o fizera em ano anterior em Buenos Aires, antes em 1875 publica
a xilogravura no jornal “O Mequetrefe”; pratica também a gravura em metal. É um
dos primeiros no Brasil a abrir a gravura de sua própria criação. Já em 1913 a
oficina está plenamente montada com todo o material, inclusive prensa elétrica
vinda da Alemanha e que tem 80 cm de entrada (largura), pronta para funcionar.
Por sorte da futura gravura brasileira é Modesto Brocos, quando de sua estada
na Europa de 1897 a 1900, que encomenda a aparelhagem necessária e é Carlos
Oswald (Florença 1882 - Rio de Janeiro 1971), em 1913, recém chegado da Europa,
para ficar aqui definitivamente, quem é nomeado professor de gravura artística
em metal. Para estudarmos a obra que nos propomos é indispensável dar uma olhada
carinhosa na figura de Carlos Oswald.
Quem é o artista Carlos Oswald que aporta com 32 anos incompletos já com sua
série Florentina gravada (obra composta de 47 gravuras sendo apenas uma aberta
em Paris) completa, em que se destaca o vigor transmitido às estampas que
representam os bois de Forte dei Marmi? As gravuras que traz, feitas em seis
anos de prática, demonstram um perfeito domínio da técnica, mostrando obra de
artista pioneiro. Seu convívio com o metal, os ácidos mordentes, as ceras e
ferramentas para o aprendizado da técnica, foi feito fora da Academia de Belas
Artes de Florença, onde estudava modelo vivo, em 1908 quando toma contato com a
arte moderna. Ele e mais um grupo de artistas, Graziosi, Falorsi e Carl
Strauss, se reúnem nas imediações da Porta Romana, em Florença, para praticarem
a gravura em metal. Abrem seus trabalhos no zinco sob orientação de Carl Strauss,
americano de origem alemã radicado em Florença e com experiência em gravura de
arte.
Meditemos que em 1910 Carlos Oswald já faz gravura colorida e transporta a
tinta de suas chapas para placas de gesso. E artista de obra rigorosa mas de
atitudes doces para todos os que convivem com ele; completamente incapacitado,
por temperamento, de um gesto mais agressivo. Este temperamento raro e inapto a
uma luta hostil é que irá, através de tenacidade e amor, implantar a gravura de
arte, chamada original, no Brasil.
Ele lutou, falando individualmente a cada um, com as aulas, em conferência, artigos
de jornal e revistas, livros, fundando sociedade divulgadora de gravura; ele lutou
para nos mostrar que a gravura não é uma arte menor dependente por inteiro do
desenho. Necessitou de bastantes anos e de uma plena certeza interior, para
provar que ela é uma arte independente, de expressão própria e não podendo ser
falsificada por outra técnica.
Este pioneiro que viu a gravura original
renascer na Europa recebe, em 1914, uma oficina, perfeitamente instalada, para
tentativa corajosa da implantação da gravura em solo artístico brasileiro.
A aula de água-forte está localizada na via mais central, à época, da então
capital do pais, no prédio recém-inaugurado na Av. Rio Branco, nº 174. São
abertas as matrículas em horário noturno, como todas as demais aulas do Liceu,
mas os alunos não aparecem; ninguém sabe o que seja isso de gravura de arte.
É forçoso a Carlos Oswald sair à cata
de alunos, é preciso doutrinar, dizer o que é uma gravura, convencer um a um a
praticá-la. Ele leva para sua oficina-atelier os artistas aos quais tem acesso
e a quem julga mais perto de assimilar as características da gravura: Henrique
Bernadelli, Adalberto Mattos, Antonio Matos, Argemiro Cunha, José Cordeiro,
Ernesto Franciscôni, João e Artur Thimóteo da Costa, Pedro Bruno, Carlos
Chambelland, Oswaldo Teixeira, Luciano Gallet, seu irmão Alfredo Oswald, os
dois últimos músicos, os demais artistas plásticos.
Esta primeira colocação de Carlos Oswald
como professor de gravura não é a clássica, à época, do mestre que fica num
estrado mais alto e fala com a autoridade de quem sabe mais; é a do divulgador, do propagandista, do cantor
que diz dos encantos desconhecidos da gravura. E o artista em tertúlia com o
artista, em que fala também da técnica.
Nesta primeira fase da oficina de água-forte do LAO os praticantes de gravura
que a frequentam não entenderam que esta tem características próprias. Olharam
a gravura como uma arte que tem a reprodução, talvez mesmo só vissem isso, como
sua principal característica, Fizeram simples estudos por curiosidade da técnica,
ou encanto ao mistério do emprego dos materiais, realizaram retratos, diplomas,
ex-libris, encomendas outras.
Em 1919 a diretoria do LAO resolve
fechar a oficina, o motivo alegado: construção de nova ala no edifício da sede.
Que contribuição trouxe à gravura brasileira essa primeira fase da
oficina-atelier do LAO? Na minha opinião o fechamento da aula foi benéfico,
pois possibilitou a meditação de como
tornar o solo fértil à plantação, florescimento e frutificação e da gravura
brasileira. Penso mais, que uma época em que ainda se media arte, classificando
alguns dos seus ramos de arte menor, não era possível destacar uma Arte que
trazia o enfoque novo de Arte independente do desenho, de pintura, com características
próprias de expressão sublinhadas por regras como assinar uma a uma as cópias
impressas, limitar as edições numerando-as, etc. Carlos Oswald ainda deu uma
clarinada em favor da gravura, protestando contra o fechamento da aula.
Organizou no próprio LAO, em novembro de 1919 "1ª Exposição Carioca de
Gravura Água-Forte". Participaram dela, expondo gravura em metal: Carlos Oswald,
Antonio Mattos, Modesto Brocos, Argemiro Cunha, Adalberto Mattos, Mille. Cora F
França, Mlle. Maria Silva, Armando Magalhães Corrêa, Altino Moraes, Augusto
Bracet, Arthur Timotheo, Florasper Renzetti, Ernesto Francisconi, Georges
Bloow, H. Bernardelli, João Timotheo, Isaltino Barbosa, José Cordeiro, Helios
Seelinger, Leopoldo Campos Gotuzzo, Mario Tulio, Márcio Nery, Morel Soutello,
Paulo Mazzuchelli, Raymundo Cella, Rodolpho Chambelland etc. Mostraram
litografia: Valle de Souza Pinto, Pedro Peres, Helios Seelinger, A. Cunha
Moulin, Hermogenes Marques, Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro, Antonio Mattos,
Mlle. Cora França, Mario Tullio etc. Em total são mais de 110 trabalhos
expostos.
Temos um intervalo de 10 anos, em que Carlos Oswald, continuando professor de
desenho do próprio LAO, confabulava sempre junto à diretoria para a reabertura
das aulas. Neste período ele não parou
de fazer gravura, abre 20 placas, trabalha em seu próprio atelier e em prensa
da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Finalmente em 1930 é ouvido e, por intervenção
do professor Eurico Alves, a prensa que havia sido desmontada, é armada
"provisoriamente" em pequena saleta. Se o primeiro período do atelier
de água-forte do LAO caracterizou-se pela boa qualidade de suas instalações,
bons materiais, ferramentas, produtos químicos importados etc, e não foi
"bem aquinhoado pelo elemento humano, culturalmente despreparado para usar
esses benefícios por desconhecimento do mundo próprio da gravura, o segundo, ao
contrário, teve instalações que se chamaram de “provisórias” que persistiram
enquanto Carlos Oswald foi professor. Mas, em compensação, os alunos que
procuraram suas aulas o fizeram ainda livres
e descristalizados de conceitos rígidos
que o fazer arte somado ao tempo de trabalho, servem para construir e
fortalecer a individualidade própria, que sedimentada pelo tempo dificulta a
compreensão da linguagem diferente. Aos virgens de conceitos era lhes mais
fácil aceitar ideias novas. Há necessidade de um parêntesis para dar um claro
entendimento do parágrafo acima, quando me refiro ao elemento humano
culturalmente despreparado, quero agora enfatizar que não estou entrando no
mérito da criatividade artística. A
Europa ainda estava em plena tarefa da mudança de enfoque dos valores da nova
gravura, ainda estava na lida de dar categoria de arte à técnica que até então
estava servindo apenas como veículo de reprodução do desenho. Os artistas já
mencionados deram o crédito do seu nome à técnica que até então era usada por
artesãos especialistas em reproduzirem suas próprias invenções, têm quem ser
olhados como uma abertura valiosa para a futura gravura original, que se faz
atualmente no Brasil com respeito à linguagem própria que ela tem.
Como já foi dito, depois de 1930
acentuando-se depois da década de 40, o atelier foi procurado pelo artista
jovem, ainda em formação, continuando o professor, basicamente com a mesma
filosofia de vida.
O aluno (a) - nesta fase revela-se a mulher interessada em gravura, arte
masculina ate então - é sempre tratado como um colega ("só artista pode
fazer gravura"), tem direito e respeito, a ideias políticas, religiosas,
artísticas, diferentes do professor. Este lhes fala mais de estética, escolas e
história da arte do que propriamente de técnica. Como retrato mais fiel de sua
prática de ensino: - todos sabemos dos inúmeros gravadores que formou, direta
ou indiretamente, mas examinando a obra de um por um, nenhum reflete influencia
sua, isto é característico do bom professor de arte, não ter aluno que siga o
seu dizer.
O que era a sala de aula em 1942, ano da matricula de Poty, artista-gravador a
quem se dirige este divagar? O espaço físico era ocupado pela grande prensa,
uma mesa utilizada para entintar as chapas, duas prateleiras altas ao fundo,
embaixo da mesa pequeno banco que procurávamos manter sempre limpo, para quando
o professor chegar, poder sentar fora da sala, pois lá dentro só havia espaço
para três alunos, pedindo licença.
Das ferramentas e outros materiais da instalação antiga não restava mais nada.
De corpóreo só existia, como vimos, o atelier de impressão. As ceras e vernizes
importados não subsistiam mais, o professor fornecia as fórmulas e alunos as
confeccionavam em casa, também em sua casa mergulhava a chapa no ácido ou a
feria com pontas e buris para abrir sulcos diretamente. Errava-se demais mas,
estes desacertos muito contribuíram para uma estampa mais vigorosa em
claro-escuro e agressividade no ataque ao metal, muito somaram para encontrar
caminhos próprios, corretos de técnica mas sem requintes voltados apenas para a
técnica.
*Orlando Dasilva foi um
importante artista gravador aluno de Carlos Oswald, além de
professor e pesquisador da história e técnicas de gravura artística.
Produziu esse importante artigo biográfico sobre Poty como introdução para
o livro de sua autoria, “Poty, o artista gráfico”, editado pela Fundação
Cultural de Curitiba em 1980.