Artistas
CIRO FERNANDES e seu ÁLBUM 12 XILOGRAVURAS
- Ciro de Uiraúna
Nertan Macedo
Um dia, fui visitar mestre Noza
no Juazeiro do Padre Cícero. A oficina do robusto velho talhador de madeira,
mãos realentadoras do céu e penúria do sertão, modeladoras de santos e pobres
dos confins de dentro, dessas gentes maceradas que nunca avistaram o mar-oceano
na pancada litorânea e tripulavam nuvens e naus sonhadoras e místicas no
azulado dos olhos do Senhor Bom Jesus e do Santo Patriarca, devassando pela via
do entendimento e do coração os mais escuros espaços de reconditos arcanos,
lobregos, soturnos páramos, além, muito além das estrelas do manto de Nossa Senhora...
oficina era uma casinha quase tapera, com um minúsculo quarto assobradado,
minicaos, onde se amontoavam beatas e cangaceiros do imaginário Noza.

"Maria", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Foi aí que conheci um pouco da intimidade da Idade Média, o medievo bafo, o hálito do antigamente, cheiro, solidão e rude humildade de oficinas que criaram, fabricaram, forneceram coisas a Dom Quixote e aos Doze Pares de França. E talvez a Carlos V e a Felipe do Escorial.
Porquanto madeira, couro, ou cola exalam, em qualquer parte, ou sob qualquer manha de sol intenso, idêntico bafio, peculiar e pateticamente histórico.
Lá encontrei, desconfiadas,
mudas, andrajosas, duas rapariguinhas a quem mestre Noza transmitia segredos do
seu oficio imaginário. Lembrei-me então e instintivamente de uma mulher que
viveu há muitos anos uma certa Joana Imaginária que esculpia nos sertões de
Santa Quitéria, norte do Ceará - e foi amada-amante de Antônio Conselheiro,
quando ele ainda não era o Taumaturgo Taurocéfalo; e o futuro profeta de
Canudos plantou no ventre dessa Joana um bastardo que se perdeu na memória, no
espaço e no tempo.

"Fim de forró", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Ciro Fernandes, imaginário da
xilogravura, talha na madeira crua imagens que vão ser imagens. Ele é neto de
mestre Noza, sobrinho de tio Zuza e primo em primeiro grau esse paraibanozinho
de Uiraúna - desse outro diabinho escopeteiro na complicada e fina arte das
talhas impressoras, o moço pernambucano Jó Oliveira, corrido e letrado da
Hungría à Bulgária, pátrias de ícones e desenhos de um só negrume ou de
vetustas cores.
Todo artesão é apátrida na razão
direta da percepção internacional. Quero dizer: se, como criador, alguém roça a
fimbria da sensibilidade humana (só aparentemente) perde as suas fronteiras
nacionais, provinciais e municipais para se projetar no "oco do
mundo", para além de onde Judas perdeu as botas. Quero ainda dizer (lição já
repetida tantas vezes): que esse alguém que cria além das suas raias
territoriais mas bebe das águas da própria cacimba e pisa descalço o próprio
chão - desenraiza-se tão-somente pela generosa beleza com que a todos os homens
contempla e contenta, a todas as nações e reinos gratifica, no mesmo passo (o
que não constitui paradoxo algum) em que mergulha cada vez mais profundamente
suas raízes no país natal, cujas lindes podem perfeitamente não ultrapassar a
porteira de um curral de fazenda de gado, ou a de um bangüé de fogo aceso ou
morto.
Foi Faulkner quem disse, uma
vez, que só o Espirito soprando sobre a Matéria pode construir o Homem.

"A onça", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Bem, o que me espanta e comove
nestas gravuras de Ciro Fernandes é algo extremamente simples e tão raro em
nosso tempo: sua autenticidade nordestina e quanta bifidez se tem ostentado nos
dias atuais em nome da autenticidade!
Ah, mundo cão, velhaco,
cosmopolita, povoado de ambíguos e fraudadores de linguagens, teorias, ideias e
imagens escritas, faladas, televisionadas, solertemente elaboradas (vide
escultura, arquitetura, pintura) para empulhar trouxas, idiotas e basbaques que
se consideram altamente sofisticados e bizarros.
Este Ciro Fernandes, não. Dele,
do Jó, do velho Noza, do saudoso Vitalino de Caruaru, do Severino de
Tracunhaém, não me canso, não me enfado, não me enfastio, não me esgotarei
nunca. Eles são puros, sinceros. Não se desenraizaram, também não se despojaram
das suas raízes, não as socaram em provetas de laboratório, não as sacrificaram
ao ridículo engajamento da temática, não renegaram sua nobreza simples, sua
pobreza orgulhosa.

"São Jorge", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Condes, barões da sua arte.
Castelões da sua alquimia e dos seus longevos mistérios plenos de liames
telúricos. Recordam aqueles príncipes georgianos que o eram porque na Georgia
para ser príncipe bastava ser proprietário de um rebanho de carneiros -piada
que, certa vez, muito aborreceu a Princesa Gourieli, née Helena Rubinstein,
bravia dama multinacional de cosméticos.
Tal qual Canudos, Ciro de
Uiraúna não se rendeu. Não se rendeu, como tantos que capitulam por um prato de
lentilhas, à migração brasileira, uma das nossas maiores desgraças intelectuais
(ainda neste ano da graça de 1978). E não entregou a rapadura porque não tem
sangue de barata e sabe nutrir sua alma da seiva de combate.
Reparem nas suas gravuras: são
feitas do calcinado pó da terra quente nordestina. Da consistência dos seus
pedrouços disseminados em meio à solidão ardente do sol, ou amaciados aos raios
dos luares da noite. Seu mundo rendeiras, cangaceiros, meninos, bichos,
lobisomens - vem do fundo da sua meninice mítica na Uiraúna paraibana. Seus
personagens caminham ao lado do fantasma do tio Zuza que lhe transmitiu, pelo
sangue, o ofício dos mestres das corporações medievais. Está aí a alma penada
de Vitalino. A de Severino de Tracunhaém. De Lampião, do Conselheiro, do Padre
Cícero, de Zé Lins do Rego, de Graciliano Ramos. Também a de Suassuna e sua
princesia armorial.

"Moagem", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Ciro é isto: continuidade que
vai da Paraíba à feira nordestina de São Cristóvão, em pleno Rio de Janeiro,
hoje realizada no antigo bairro imperial onde morou Pedro Segundo.
Que dignidade de
artista-gravador e quanta lealdade às fontes e origens da sua tosca vida
sertaneja, hein Dona Perla Sigaud?!
Nertan Macedo (1929-1989)
Escritor e membro da Academia Cearense de Letras

Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha (1922-2009),
chefe do Depto de Iconografia da Biblioteca Nacional
Grande foi a atração exercida pelo Brasil nos artistas do século XIX. Atestam esse interesse os inúmeros álbuns e livros de viagens ilustrados que fixam as paisagens luminosas, os insólitos aspectos de uma sociedade em permanente evolução e os costumes populares guardando marcantes reminiscências africanas.
Dentre os muitos conjuntos que levaram à Europa o conhecimento do Brasil, destaca-se o valioso álbum de gravuras a água-tinta intitulado Souvenirs de Rio de Janeiro, dessinés d'aprés nature par J. Steinmann.
Debruçar-se no passado, folhear estes preciosos conjuntos, evocar antigas paisagens hoje transformadas pelo progresso, é não só prazer, mas também razão de estudo. Assim, mister se faz atualizar as informações referentes a Johann Stein mann, responsável pela edição de tão primoroso conjunto, e do artista que as gravou, Friedrich Salathé. Poucas são as notícias sobre o litógrafo e desenhista suíço, considerado o introdutor da litografia nos estabelecimentos oficiais do Rio de Janeiro.

O litógrafo Jacob Steinmann
Johann Jacob Steinmann (Basel, 17 set. 1800 Basel, 20 jun. 1844), contratado pelo Arquivo Militar, aqui chegou em outubro de 1825, acompanhado de mulher e filha e desembarcou do bergantim Cecília, vindo da França. Ao se registrar na Polícia deixou fixada uma descrição de sua pessoa: 24 anos, estatura baixa, cor branca, cabelos castanhos para ruivos, pouca barba, rosto comprido e olhos pardos. Sua vinda para o Brasil, conforme se depreende da documentação existente no arquivo de sua cidade natal, Staatsarchiv Basel, foi resultado de entendimentos com o representante do governo brasileiro em Paris, que o contratou para, no Rio de Janeiro, iniciar a arte da litografia como "litógrafo do Imperador", isto é, litógrafo oficial, com subordinação ao Arquivo e Academia Militar. Acrescentaremos a sua biografia que Steinmann iniciou seus estudos em 1821, entrando para o estabelecimento litográfico de Engelmann, em Mulhouse, Alsácia, vizinho de seu torrão natal. Aperfeiçoa-se em seguida com Alois Senefelder, o inventor da litografia, estabelecido em Paris, aonde vai encontrá-lo o encarregado de negócios brasileiro. Trouxe ele os elementos materiais imprescindíveis ao ensino da arte litográfica, cuja oficina funcionou na Rua da Ajuda, tendo o Arquivo Militar, além do especializado mestre, mais seis aprendizes sob sua orientação (Almanaque do Império do Brasil, 1829).

SOUVENIRS DO RIO DE JANEIRO: "Vista de N.S. da Glória et da Barra do Rio de Janeiro", vista nº7, desenho de Kretschmer, gravador por Frédéric Salathé. Gravura em metal, água-tinta, aquarelada à mão e fixada sobre cartão cinza escuro de época,
1835 com o raro relevo seco de J.S. O conjunto de 13 paisagens desta obra é
considerado como um dos mais raros e
preciosos álbuns de vistas do Rio de Janeiro impresso no sec. XIX.
Documentos existentes no Arquivo Nacional registram que, logo após haver organizado a oficina, montando máquinas e lecionando a arte litográfica a seus ajudantes, Johann Steinmann pretendeu, além dos compromissos oficiais, encarregar-se de encomendas particulares e comerciais, usando para tal a maquinaria de propriedade do Estado. São de grande interesse tais papéis, de cuja leitura se infere haver ele obtido uma autorização verbal do imperador Pedro I, para exercer esses serviços extraordinários, não recebendo, porém, o necessário apoio do comandante chefe da Academia Militar, Joaquim Norberto Xavier de Brito, nem o veredictum do ministro seu superior.
O fato é que, durante cinco anos, trabalhou litografando mapas e outros impressos para o Arquivo Militar, impressora cartográfica oficial do Primeiro Império e, em 1830, ao terminar seu compromisso com o governo de Sua Majestade Imperial D. Pedro I, estabeleceu oficina própria de cujas prensas se conhecem alguns mapas e folhas volantes de costumes e tipos populares do Rio de Janeiro.

SOUVENIRS DO RIO DE JANEIRO: "Ilha das cobras", vista nº5, desenho de Jacob Steinmann, gravado por Frédéric Salathé. Gravura em metal, água-tinta, aquarelada à mão e fixada sobre cartão branco de época,
1835. O conjunto de 13 paisagens desta obra é considerado como um dos mais raros e preciosos álbuns de vistas do
Rio de Janeiro impresso no sec. XIX.
Os registros da época relacionam para sua oficina os seguintes endereços, publica dos no Almanaque do Império do Brasil, editado por Seignot Plancher: 1829 (Beco Ma nuel de Carvalho n° 2, proprietário J. Steinmann) e, em 1830 (Rua do Ouvidor, nº 199). Pertencem à sua oficina litográfica as seguintes estampas de tipos populares impressas no Rio de Janeiro (peças raríssimas, guardadas na Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional):
1. João
Theodosio, Capitão Henrique Dias, por antonomásia parte", (CEHB, 17.851);
2.
Buonaparte (a paisana), (CEHB, 17.852);
3. O
filósofo do caes do Paço, (CEHB, 17.854);
4. O
músico Policarpo, (CEHB, 17.855);
5. Praia
Grande (doido), (CEHB, 17.856).
Conhecem-se ainda vários mapas, alguns dos quais figuraram em obras editadas por Seignot Plancher, e impressos na litografia do Arquivo Militar ou em sua oficina:
1.
Planta demonstrativa da medição da Imperial Fazenda de Santa Cruz, de duzida da
cópia em resumo do Tombo da mesma Imperial Fazenda. Pro cedido em tempo dos
Jesuítas, cujo resumo me foi presente pelo Ilmo. Sr. Desembargador José Paulo
de Figueiredo Nabuco de Araújo, escripto de seu próprio punho por cópia
conforme ao original feita e por mim assinada Engenheiro Cezar Cadolino.
Calculada pelo piloto Juliano de Sa Chaves. Rio de Janeiro, Lith. de Steinmann;
2. Plan
de la Baie de Rio de Janeiro levé em 1826 et 1827 par M. Barral, lieutenante de
Vaisseau, embarqué sous les ordres de M. Ducamp de Rosamel contre amiral
Commandant de la Station Française de l'Amerique Meridio nale. Rio de Janeiro,
chez Seignot Plancher, Lith. de Steinmann, s. d. (1830);
3.
Planta do Rio de Janeiro. E. de la Michellerie del. Rio de Janeiro, Lith. De Steinmann
e Cia, 1831;
4.
Trecho da Fazenda de Santa Cruz assinaladas as testadas com terras vizinhas/Rio
de Janeiro, Lith. de Steinmann, s. d./ 1829/;
5.
Planta do Rio de Janeiro. 1828. Lith. do Archivo Militar;
6.
Planta hydrographica do Porto do Rio de Janeiro. Levantada pelo Capitão Tenente
Diogo Jorge de Brito e outros oficiais da Armada. Ano de 1810. Lith. do Archivo
Militar, 1827;
7. Bahia
de Todos os Santos. Steinmann sc. Lith. do Archivo Militar;
8. Mapa
da Província do Rio de Janeiro. Lith. de Steinmann, 1833. (In Ayres de Cazal. Corographia brasilica, 2 ed. tomo II);
9.
Appendix a Colleção Chronologica Systematica da Legislação da Fazenda no
Império Brazileiro, folha de rosto lith. por Steinmann.
Certamente também foi litografada em sua oficina a estampa seguinte representando um acontecimento político no Rio de Janeiro, por ocasião de uma das revoltas na época da Regência:
10. Entrada na Igreja de S. Francisco de Paula, do enterro do guarda municipal Estevão de Almeida Chaves, morto no ataque à ilha das Cobras em 7 de outubro de 1831. Litho. por Eugene de la Michellerie (CEHB, 17.492), folha volante que acompanhava a edição do Jornal do Commercio, editado por Seignot Plancher, para quem Steinmann trabalhava. Em 1833, a 12 de fevereiro, Steinmann embarca de volta à França, conforme as declarações constantes do registro da Polícia.
Embora considerados peças raríssimas dos primórdios da arte de gravar no Brasil, não são, porém, os documentos acima relacionados os que dão a Johann Jacob Steinmann a projeção que atualmente lhe concedem os colecionadores. E sim o seu encantador álbum de vistas editado em Basel, na Suíça, depois de voltar à sua terra natal, ao encerrar no Rio de Janeiro suas atividades como litógrafo - hoje procurado e exibido como uma das joias preciosas de qualquer coleção de estampas do Brasil.

SOUVENIRS DO RIO DE JANEIRO: "Moro do Castello & Praya d'Ajuda", vista nº10, desenho de Jacob Steinmann, gravado por Frédéric Salathé. Gravura em metal, água-tinta, aquarelada à mão e fixada sobre cartão branco de época,
1835. O conjunto de 13 paisagens desta obra é considerado como um dos mais raros e preciosos álbuns de vistas do
Rio de Janeiro impresso no sec. XIX.
Consta esse conjunto, intitulado Souvenirs de Rio de Janeiro, de doze águas tintas aquareladas, apresentadas em folhas separadas, montadas em papel espesso, cuja moldura litografada apresenta, entre arabescos e motivos ornamentais de caráter naturalista, pequenas cenas de costumes brasileiros entremeados numa profusão minuciosa de folhagens e frutos tropicais, lembrando, pelo excesso de ornamentação, influências da "chinoiserie" do século XVIII. A folha de rosto repete, na cercadura, duas colunas de florões de plantas tropicais, ladeando cenas típicas brasileiras, e ao centro ocorre o título e demais dizeres: Souvenirs de Rio de Janeiro, dessinés d'aprés nature et publiés par J. Steinmann. Varia a imprenssão de alguns exemplares, onde se pode ler ainda: "a Bâle, chez editeur".
A data dos mais antigos álbuns é fixada em 1835; conhecem-se outros, datados de 1836, e ainda exemplares há em que o ano foi alterado para 1839, a fim de se fazer crer numa edição mais atualizada. Quanto às estampas que compõem o conjunto conhecem-se 13: pequenas vistas da cidade e arredores do Rio de Janeiro (província), todas preparadas para figurar no álbum, que, entretanto, completo, consta de 12 águas-tintas primorosamente aquareladas, sendo raríssimos os exemplares monocromos.
Gravadas pelo laborioso processo sobre o cobre por Friedrich Salathé, famoso artista suíço, foram elas preparadas segundo desenhos de vários artistas que estiveram no Brasil entre 1825 e 1833:
1.
Caminho dos Órgãos, desenho de Steinmann;
2. Largo
do Paço, desenho de Victor Barat;
3. Nova
Friburgo (Colônia Suíça no Morro Queimado), desenho de Steinmann;
4.
Plantação de café, desenho de Steinmann;
5. Ilha
das Cobras, desenho de Steinmann;
6. St.
João de Carahy, a Praia Grande, desenho de Steinmann ;
7. Vista de N. S. da Glória e da Barra do Rio de Janeiro,
desenho de Kretschmer;
8. Vista
do Sacco d'Alferes et de St. Christóvão, desenho de Steinmann;
9. Vista
tomada de Santa Teresa, desenho de Kretschmer;
10.
Morro do Castello e Praya da Ajuda, desenho de Steinmann;
11.
Botafogo, desenho de Steinmann;
12.
Igreja de S. Sebastião, desenho de Steinmann;
13.
Fortaleza Sta. Cruz e Praya Vermelha (sic) desenho de Deburne.

SOUVENIRS DO RIO DE JANEIRO: "Plantação de café", vista nº4, desenho de Jacob Steinmann, gravado por Frédéric Salathé. Gravura em metal, água-tinta, aquarelada à mão e fixada sobre cartão branco de época,
1835. O conjunto de 13 paisagens desta obra é considerado como um dos mais raros e preciosos álbuns de vistas do
Rio de Janeiro impresso no sec. XIX.
Figuram em geral nos álbuns apenas 12 destas peças, sendo que as mais raras e difíceis de encontrar nos conjuntos são as de número 12 e 13, que raramente ocorrem no mesmo álbum.
Interessante detalhe em relação ao endereço do editor é que ele ocorre na folha de rosto: "publiés par J. Steinmann a trouver chez..." em branco em alguns exemplares, enquanto que em outros se completa a indicação: "Deposé la Direction Paris, chez Rittner et Goupil". As vinhetas trazem na margem inferior direita: "A Bâle, chez Steinmann editeur".
Infere-se das notícias biográficas do gravador suíço Friedrich Salathé, terem sido as estampas preparadas em Paris. Ele nasceu em Birmingen, perto de Basel, a 11 de janeiro de 1793, e faleceu em Paris, a 12 de maio de 1858. Foi aluno do conhecido mestre Pieter Birmann e, tendo se associado a seu filho Samuel, viajou para a Itália entre 1815 e 1821. Nos anos seguintes, 1821-1823, Salathé trabalhou para a firma Falkeisen e Huber, estabelecida em sua cidade natal. Transferiu-se em seguida para Paris, onde gravou panoramas e vistas, trabalhando para casas especializadas no gênero, entre elas Rittner et Goupil. Viveu em Paris até morrer.
De 1831 a 1842, a sociedade Rittner et Goupil achava-se estabelecida em Paris como firma editora de estampas. Para ela trabalhava Friedrich Salathé. É fácil acompanhar os entendimentos de Steinmann, então de volta do Brasil, com seu compatriota e amigo e a firma especializada; 26 cartas existentes no Staatsarchiv, Basel, testemunham as ligações de amizade e negócios que uniam os dois suíços e os trabalhos preparatórios da gravação e impressão das belíssimas águas-tintas.
Graças a outros trabalhos que conhecemos, panoramas de cidades brasileiras, também gravados por F. Salathé, podemos admitir serem as águas-tintas dos diversos álbuns Souvenirs de Rio de Janeiro, aquareladas posteriormente por Steinmann, enquanto outras o foram pelo célebre gravador suíço. Como é sabido, são raríssimos os exemplares monocromos.

SOUVENIRS DO RIO DE JANEIRO: "St. João de Carahy, a Praia Grande", vista nº6, desenho de Jacob Steinmann, gravado por Frédéric Salathé. Gravura em metal, água-tinta, aquarelada à mão e fixada sobre cartão branco de época,
1835. O conjunto de 13 paisagens desta obra é considerado como um dos mais raros e preciosos álbuns de vistas do
Rio de Janeiro impresso no sec. XIX.
Conforme os dizeres da folha de rosto, que variam, podemos acrescentar que a edição foi em parte lançada pela casa editora francesa em Paris e parte entregue a Steinmann, que a distribuiu e vendeu em Bâle, na Suíça.
Devido ao grande interesse que o conjunto tem despertado no Brasil, o álbum Souvenirs de Rio de Janeiro mereceu duas reedições fac-similares nas décadas de 1940 e de 1950, publicadas pela Livraria Martins Editora e pela Frank Arnau Gráfica. Lança-se presentemente uma terceira edição em fac-simile, preparada pelos editores de tantos livros sobre o Brasil, que vem atestar o alto conceito em que é tido o álbum de Steinmann - não só pela beleza das estampas, como por ser também um in dispensável documentário do Rio de Janeiro na primeira metade do século dezenove. Ao programar para o ano de 1967 esta publicação, contribui a Livraria Kosmos Editora, com elevado padrão de arte gráfica, para enriquecer a iconografia carioca, na data em que se comemoram os quatrocentos anos da transferência da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (foi fundada dois anos antes) da várzea do Cara de Cão para o morro do Castelo.
1. Arquivo Nacional, Policia. Legitimações e passaportes, Codice 381, livro
2 fls. 14 verso.
2. Ministério da Guerra. Arquivo Militar. Caixa 961-1, 1826.
Fonte: Cunha, Lygia da Fonseca Fernandes. O Acervo Iconográfico da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2010.
Há
alguns meses atrás, ao organizar as gravuras produzidas recentemente, percebi
que anjos e penas haviam tomado o primeiro plano da minha imaginação. Essa
constatação despertou minha curiosidade e, procurando o início desse processo -
o como, onde e quando aquilo havia
começado, identifiquei Um anjo para Vitor,
gravura
que fiz para meu filho caçula pouco depois que ele nasceu. A imagem vem da
ideia comum de que cada ser humano tem seu anjo guardião. Então imaginei que, para
proteger um bebê de colo, nada melhor que um outro anjo-menino de cabelos
encaracolados e carinha de sapeca, apenas contemplando de mãos postas.

Patricia Pedrosa, gravadora contemporânea
Tempos depois, quando
concorria a uma vaga para mestrado, me confundi com o horário e cheguei muito
cedo no dia da prova oral. Então fui visitar meu Mestre Kazuo Iha, professor de
litografia da EBA¹, que me ofereceu
gentilmente uma pedra para desenhar para que o tempo de espera passasse mais
rápido. Nesse dia gravei Um anjo para
Mestre Antonio², motivada pelos estudos sobre
o Colonial e o Barroco Brasileiro retomados para o concurso. Depois veio a
litografia Asas de Menino, novamente
inspirado em Vitor. Na sequência, a xilogravura “O Músico de Ataíde”³ e a litografia "A sombra", que registra o lado escuro de cada ser no
sentido psicanalítico, como arquétipo, que nos lembra de que mesmo enquanto
somos anjos, temos nosso lado sombrio.
Até então não havia
percebido que os anjos tinham se tornado um tema recorrente, que dialogava com
o Barroco Brasileiro, mas que o ultrapassava. A arte barroca no Brasil tem o
emblema do trânsito entre a primitividade dos indígenas e a modernidade de uma
nação que viria a ser, em estado de formação. A figura do anjo chega ao Brasil
neste momento mas, como figuração ligada à espiritualidade humana, sobrevive a
esse tempo e chega a nós. Me agrada esta figura intermediária entre o homem e o
divino, muito presente na arte colonial e que alcança a contemporaneidade.
Junto com o anjo, a pena foi tomando lugar no meu pensamento criativo e se tornou
um elemento significativo (Poesia Alada).
Simples e bela, símbolo de leveza e, no meu entender, também de desprendimento,
que me remete a algo de que se despoja quando substituído por outro novo. Penso
que a pena seja para o anjo, o mesmo que a pétala é para a flor.

PATRICIA PEDROSA: "Asas de menino", litografia colorida de 2015/2017.
A partir da consciência da presença dos anjos nessa fase do meu trabalho, esta série passou a tomar corpo. O trabalho mais recente é Fantasia Barroca, uma xilogravura colorida de 1,30 x 0,60 cm na qual uma anjo-guardião abre suas asas potentes sobre 4 anjos-meninos. Três desses anjinhos são releituras livres que realizei a partir de obras dos mestres do barroco brasileiro: Mestre Valentim (4), Aleijadinho e Mestre Ataíde. Da direita para a esquerda temos o anjo de Mestre Ataíde (Anjo 3), em seguida o anjo do Mestre Antônio/Aleijadinho (Anjo 2), depois o do Mestre Valentim (Anjo 1) e finalmente o meu anjo, o Anjo 0. Com o rosto em branco, como daqueles painéis vazados em parques de diversão para que encaixemos o rosto para fotos, o Anjo 0 é o lugar comum, pode ser cada um de nós. Nesta gravura, recortei a matriz para as figuras dos anjos-meninos, produzindo sub-matrizes para que recebessem cores na mesma entrada que a matriz principal, e para que fossem intercambiáveis. As técnicas da gravura são muito antigas, sendo a xilogravura a mais antiga delas, entretanto, continua sendo uma linguagem em constante experimentação e renovação. A madeira utilizada foi o fundo do berço do Vitor – um gravador não consegue descartar nenhuma madeira assim tão fácil! Apesar da escolha ter sido apenas em função do tamanho da chapa, sem um objetivo conceitual inicial, ao final deste texto, me dei conta de que até a matriz teve significado pertinente. Faço relações entre o berço e a matriz: o berço que acolhe a criança/ a matriz que acolhe a imagem; do berço sai a criança para seu crescimento/da matriz sai a imagem para a impressão; do fundo do berço-matriz sai a criança-anjo carregando consigo toda a potencialidade do vir a ser e das infinitas rotas de vôo possíveis /a madeira-matriz é o berço de todas as imagens que o artista queira criar. Quando lidamos com anjos, nada é por acaso.
Patricia Pedrosa
Petrópolis, 03 de novembro de 2020.
1-Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2-Antônio Francisco Lisboa, escultor e arquiteto, mais conhecido como o
Aleijadinho (Ouro Preto, c. 1730 – Ouro Preto, 1814).
3-Manuel da Costa Ataíde, pintor, conhecido como Mestre Ataíde (Mariana,
1762-1830).
4-Valentim da Fonseca e
Silva, escultor, mais conhecido como Mestre Valentim (Serro, Minas Gerais, c.
1745 – Rio de Janeiro, 1813).
*Patricia Pedrosa é artista gravadora contemporânea, Professora de litogravura na
Escola de Belas Artes da UFRJ, doutora em Artes Visuais e autora dos livros “Maria
Bonomi com a gravura: do meio como fim ao meio como princípio” e “Oficina de
litografia”.
Em
suas anotações de viagens de barco pelos rios da Amazônia, Diô Viana vem
captando paisagens e ambientes amazônicos. O artista desenha, pinta, coleta e registra em
seus bloquinhos, traços dos infinitos elementos naturais encontráveis na
região. As notas, que não são ilustrações, ele nomeia “diários visuais”. Os
esboços feitos e os materiais coletados são depois retrabalhados no ateliê, gerando
pinturas, gravuras e técnicas mistas – aqui expostas.
Todo
um bioma pulsa, em imagens e ritmos, nas obras que resultam das viagens.
O
artista reproduz a pulsação da vida do bioma amazônico em locais distantes como
o Rio de janeiro ou a França – onde também reside – movido por uma relação profunda,
de raiz, com a região. Diô nasceu e cresceu no estado do Pará, e é possível perceber
nas suas obras o respeito, a delicadeza e a intimidade com que trata os elementos que transforma em imagens,
e a desenvoltura com que relaciona o conjunto de signos e procedimentos que compõem
seu repertório.

DIÔ VIANA: "Sem título", pintura a óleo sobre tela, 2020.
As
obras não são representações, também não são puras abstrações. Situam-se num
lugar intermediário, flutuam entre abstração e figuração. Há preferência por
grafismos orgânicos. A pintura possui uma qualidade sensorial que favorece a
imersão. Em meio ao conjunto de pinturas de maiores dimensões, tem-se a sensação de ser tragada (o) pela força dos
elementos, pelas cores, volumes e movimentos, que aproximam até mesmo os sons e
aromas da floresta. Uma sensorialidade envolvente e sinestésica emerge dos azuis,
das combinações com vermelhos e tons de terra, ocres, dos verdes meio
submersos...
As
imagens se constroem por sobreposição de camadas, transparências e
concentrações matéricas – traços, linhas, pontilhados, manchas, pontos em forma
de gota, espaços vazios, acúmulos de tinta. O processo resulta numa espécie de
camouflage, que induz uma observação mais atenta, um olhar sutil, para
mergulhar na obra e decifrar quais forças, seres e entes naturais se encontram
presentes ali.

DIÔ VIANA: "Sem título", desenho sobre papel, 2019.
Observados
à distância, alguns trabalhos remetem a mapas meteorológicos, fotografias
aéreas de geografia dos continentes, imagens de satélite gravadas em vídeo do
movimento dos oceanos, massas de chuva, ventos, tornados, nuvens e outros
fenômenos aéreos da natureza. Já outras transmitem uma transparência aquática
na qual flutuam formas mutantes que lembram pedras no fundo do rio, ou sombras
de pedras que se projetam para o plano frontal.
Os
rebatimentos das imagens criam uma condição de movimento contínuo e circular, e
preenchem nossos sentidos com o eterno devir das águas onipresentes da região.
Na evocação, seja das gotículas na atmosfera, da chuva, seja do curso de um
rio, sente-se o mesmo ritmo.
Vislumbra-se
uma poética das águas, por entre formas que se esvaem.

DIÔ VIANA: "Sem título", pintura a óleo sobre tela, 2021.
É
notável o uso das cores e dos contrastes, por exemplo, entre o azul e o negro,
ou o relevo dos vermelhos-terra, que nos faz sentir o barro. Em outros momentos
sentimos as texturas, como se estivéssemos caminhando sobre folhas ou alisando
um pelo de animal...
O
negro carvão carrega o imaginário da abrasão. Impossível não associa-lo à
frequente matança da vida no nascedouro, empreendida por homens cuja humanidade
se demonstra improvável. Sina que coloca em risco um bioma frágil, populações
indígenas, ribeirinhos, coletores de frutos e pescadores que habitam e guardam
a floresta, espécies animais e vegetais, recursos hídricos e minerais, um
manancial de vida e conhecimento ainda não revelado. Sina que a todos nós
submete, enquanto habitantes do planeta.
A
presença do carvão, físico e simbólico, nos alerta para um futuro cada vez mais
presente. Nas terras calcinadas pelas queimadas e derrubadas das florestas, as
águas não mais fluirão livremente.
Fabiana Éboli Santos
Rio, março de 2022