Desde que vim conhecê-la, a gravura me pareceu ser a música de câmara das artes visuais. Quase que imaterial, pelo mínimo de elementos integrantes, a expressão adquire grande densidade poética, pois, por mais ligeira que fosse, cada acentuação formal torna-se plenamente significativa e essencial.
Também, por ser a um tempo tão despojada e concentrada como a música de câmara, a gravura exige mais do artista e do espectador. Recompensa-o, sem dúvida. Como e porque vieram a me atrair – a gravura e a música – aprofundando-se o fascínio com o decorrer do tempo, não sei dizer. Em minha infância, marcada por várias emigrações e pela extrema pobreza de meus pais, faltaram as musas. Ainda criança vim ao Brasil, mas já aos 13 anos foi preciso trabalhar. Procurei compensar a rotina diária, massacrante, pela leitura. Li vorazmente, e ainda hoje, ao abrir um livro, a magia da palavra me arrebata de imediato.
Desde cedo desenhava, e auto-didata, tinha começado a gravar. Porém bem mais tarde, já casada (interrompendo uma bem sucedida carreira de secretariado), pude realizar-me na arte.
A ocasião concreta foi um curso de artes gráficas a ser ministrado na Fundação Getúlio Vargas, do Rio de Janeiro. Curso de seis meses apenas, proporcionara-me uma iniciação técnica rudimentar, mas o simples fato de eu poder dedicar o dia todo, todas as horas úteis, a algo que me interessava e mobilizava por inteiro o meu ser, o pensar, sentir e crescer, tornou-se uma experiência profunda que decidi deixar de vez qualquer outra ocupação. Tornei-me artista profissional.
Iniciou-se então um caminho de experimentações, onde tudo se misturava: a busca de conhecimentos técnicos e formais, de matérias diversas, do preparo e processamento de matrizes, de tintas, ácidos, papéis, modos de impressão, junto com problemas de composição, linhas, cores, formas, problemas de estilo e interpretação.
Também por essa época comecei a ensinar: experiência paralela a do trabalho artístico, embora em nível mais conceitual. Hoje entendo que tinha de ser assim, mesmo se as circunstâncias fossem outras: a forma de cada um, e a técnica, complementam-se na busca de expressão – esta busca é sempre intuitiva e, em cada mínima divagação, seletiva da própria personalidade.
A princípio, os meus trabalhos eram figurativos, descritivos, desenhos e gravuras de pequeno formato e de temática social: favelas, homens, mulheres, crianças. A procura de uma carga expressiva mais densa, porém, levou-me ao Expressionismo. De lá, passando pelo Cubismo, cheguei à arte abstrata.
Foi um processo que durou anos. Eu não o programara; penso que isto não seria possível. Na verdade, caminha-se de trabalho para trabalho, e cada vez a intenção de alcançar uma forma expressiva – ainda desconhecida – recoloca um novo ponto de partida. Na época, por exemplo, deparei-me com dois problemas, provindo de áreas diferentes, que me mobilizaram profundamente. Percebi que em certas situações humanas, de grande sofrimento, guerra, bomba atômica, campo de concentração, fome, qualquer comentário artístico que queria dar dimensões estéticas ao fato, torna-se sem sentido. Seria melhor, e seria muito, tentar aproximar-se da realidade através de técnicas documentárias. Eu mesma estava elaborando uma composição figurativa sobre o tema “Retirantes”. Abandonei-a no fim. Por outro lado, eu havia visto reproduções de obras de Cézanne (não existiam originais no Brasil). Sua visão de espaço e a problemática da forma que levanta foram uma revelação tão grande para mim, que tudo o que até então imaginava se transformou. Estilisticamente, o meu trabalho começou a mudar. Alguns colegas e críticos de então o consideravam uma “traição” ao conteúdo humano da arte. Fiquei bastante magoada, mas interiormente eu não tinha mais escolha: ou era este o meu caminho ou nenhum.
FAYGA OSTROWER: “Sem título”, 1953. Gravura em metal produzida para a Sociedade Amigos da gravura, fundada por Raymundo Ottoni de Castro Maya no RJ na década de 40
Em 1954 realizei minha primeira exposição abstrata. O espaço me fascinava. Procurava compreendê-lo melhor. Procurava, nas imagens que me vinham, articular certas relações, estabelecer certos tipos de equilíbrio espacial. Usava linhas e intervalos, superfícies e intervalos. Vim a compreender a função do intervalo na estrutura espacial, sustentando e moldando a própria extensão de espaços, qual silêncio que molda as palavras faladas. A cor, na época, ainda tinha para mim uma função secundária: a de diferenciar as várias áreas indicadas por linhas ou superfícies, conferindo-lhes maior peso visual e densidade na composição.
Por enquanto experimentava com várias técnicas, sobretudo xilogravura e gravura em metal. Procurei conhecer melhor a linguagem da gravura, nas possiblidades diferentes que cada material oferece de se criar formas expressivas, especificamente vinculadas ao material e revelando seu caráter de um modo melhor, ou novo. Desde então, a linguagem com várias técnicas, sobretudo xilogravura e gravura em metal. Procurei conhecer melhor a linguagem da gravura, nas possibilidades diferentes que cada material oferece de se criar formas expressivas, especificamente vinculadas ao material e revelando seu caráter de um modo melhor, ou novo.
FAYGA OSTROWER: “5823”, 1958. Xilogravura em preto sobre papel de arroz
Esta obra é cópia do exemplar que participou da XXIX Bienal de Veneza e que deu à artista o Grande Prêmio Internacional de Gravura, um dos mais importantes prêmios ganhos até hoje por um artista brasileiro
Desde então, a linguagem como problema de arte, em qualquer matéria ou técnica, tornou-se importantíssima para mim.
Em 1957 e 1958 ganhei os prêmios maiores nas Bienais de São Paulo e Veneza. Foi, sem dúvida, maravilhoso.
Contudo, afetou pouco o meu trabalho. Os grandes problemas, os problemas íntimos ao trabalhar, permaneciam inalterados. As matrizes e as folhas de papel continuavam olhando para mim como quem dizia: e agora? E eu tinha sempre o mesmo medo de começar um novo trabalho.
FAYGA OSTROWER: “7008”, xilogravura em papel japonês, 1970
Em 1960 aceitei um convite para realizar dois painéis de dimensões monumentais, em cerâmica esmaltada. Após concluir a tarefa – que levou dez meses – senti que seria difícil voltar a uma escala pequena, de meus trabalhos anteriores. Ampliei o formato das minhas gravuras.
Como todo artista sabe, a escala representa um fator determinante na elaboração de qualquer forma visual, influindo no próprio processo imaginativo da elaboração. Essa mudança não tinha sido premeditada. Ela simplesmente surgiu como proposta de trabalho. Mas agora os mais diversos problemas de espaço e de equilíbrio se levantavam como consequência direta, tessituras, contrastes, densidades, tensões. Requeriam uma nova adequação entre forma e conteúdo expressivo. Mesmo as várias técnicas de gravura tinham de ser compreendidas de uma maneira diferente para fazer jus à escala maior.
FAYGA OSTROWER: “Rochedos sobre águas”, litogravura colorida de 1985
1965 foi um ano difícil para mim em termos pessoais. Doenças, hospitais, uma recuperação lenta cheia de novas angústias. Quanto finalmente tornei a trabalhar, constatei, perplexa, que algo de fundamental devia ter mudado em mim: não só eu estava usando cores intensas, luminosas, como também a própria cor tinha se tornado, ela mesma, forma expressiva; em vez de acompanhar e sustentar outros elementos visuais na estrutura do espaço, a cor agora era o elemento predominante em minha imagem. Ao avaliar os meus trabalhos em andamento, tirando alguma coisa aqui e juntando outra ali, - processo sempre intuitivo – tive que constatar o fato que estava ocorrendo, e que alterava inclusive o próprio conteúdo emotivo das gravuras que eu produzia.
Novamente, eu não o havia premeditado. Compreendi então o quanto nesse ano difícil, que parecia interminável e sem um único pensamento positivo, algo deve ter acontecido no fundo do meu ser. Talvez uma espécie de reorientação nas minhas prioridades afetivas. Certamente algo a ver com os valores da vida.
Tenho continuado a trabalhar, experimentado novas técnicas – a convite, por interesse; é difícil definir sempre a motivação. Indubitavelmente envolve uma necessidade interior.
Procurei compreender as possibilidades da serigrafia, da aquarela – que é uma grande experiência e constante aventura – e, agora, a litografia, não menos difícil do que a aquarela no que diz respeito à fusão de espontaneidade e controle por parte do artista, se ele quer descobrir os limites, ou as possibilidades, dessa linguagem.
FAYGA OSTROWER: “2106”, serigrafia colorida com tinta prata e dourada, 2001.
Olhando os anos de trabalho e avaliando os resultados, vejo claramente que o meu caminho me levou a uma visão mais lírica do mundo. As minhas imagens se tornaram mais serenas, mais contemplativas. Embora na vida real do dia-a-dia, raramente consigo atingir esse tipo de distanciamento diante das coisas, a visão existe em mim como uma aspiração válida.
Sinto-me mais e mais atraída por uma certa luminosidade transparente, uma radiosidade. Nas várias matérias e técnicas, procuro as transparências.
É difícil, porém, encontrar palavras para aquilo que intimamente se sente como beleza maior. Sei, por experiência própria, que tudo o que conseguirei será um compromisso entre aquilo a que aspiro e aquilo que posso fazer.
No momento mesmo do resultado final de uma obra, aquilo a que aspiro sempre se afasta para novas distâncias. É verdade que, ao mesmo tempo, com isto já se coloca a proposta para novos trabalhos.
Fayga Ostrower, 1983
Texto publicado por ocasião da Exposição retrospectiva de Fayga Ostrower "Obra Gráfica: 1944 - 1983" , ocorrida no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, outubro de 1983.