No Brasil, seu aparecimento se dá conjuntamente com o avanço da arte social do segundo modernismo e sua criação foi incentivada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) por ser a gravura a forma de divulgação das artes visuais mais democrática e de fácil produção e distribuição.
Mas, ao contrário dos demais clubes caracterizados por uma arte social homogênea, o Clube dos Glifófilos se diferenciou por agregar também, entre os artistas que produziram as gravuras, um grupo alheio às questões políticas, mas fiel às convicções artísticas de sua arte.
O clube se diferenciou dos demais clubes de gravuras patrocinados pelo PCB por ter abrigado, em seu seio, duas correntes artísticas que ainda, de forma anacrônica, se faziam presentes no cenário das artes visuais dos anos 50: os modernistas e os acadêmicos. Esses dois grupos ligados à figuração eram liderados pelo seu presidente, Candido Portinari, e por seus seguidores, adeptos de uma linguagem moderna da gravura: Poty Lazzarotto, Eugênio Proença Sigaud, Fernando P. e Tomás Santa Rosa, e pelos acadêmicos, representados por seu vice-presidente, Carlos Oswald, e seus seguidores: Hans Steiner e Carlos Geyer além de Edgard Cognat, comprometidos com a tradição da arte da gravura água-forte.
O Partido Comunista do Brasil (PCB), ao contrário de todos os outros partidos existentes na época, era o único que dispunha de um departamento cultural para dar apoio e promover ações culturais, caracterizadas pelo engajamento político e por uma estética social que seduziu a grande maioria dos artistas daquele período. No entanto, o Clube também agregou artistas que tinham outras predileções políticas, religiosas e estéticas, mesmo dentro do próprio grupo de Portinari.
TOMÁS SANTA ROSA: "Sem título", 1950. Gravura água-forte, produzida especialmente para o Clube dos Glifófilos, o primeiro clube de gravuras do Brasil.
A união destas duas correntes distintas em torno da gravura, seja ela sob a ótica ideológica do PCB ou a de sua simples divulgação como uma arte democrática, agregou esse grupo de pintores na defesa da figuração e no desprezo do abstracionismo que começava a aparecer nas discussões acadêmicas, na imprensa e entre os próprios artistas. A existência do Clube dos Glifófilos, ainda que efêmera, foi mais uma demonstração de que na década de 50 se faziam presentes, mesmo que de forma anacrônica, as questões plásticas da figuração, e as novas linguagens que apareciam continuavam a alimentar esse debate.
A inauguração em 1948 da Galeria Calvino por Calvino Filho, famoso editor de livros com temática marxista, aspirava mudar os paradigmas referentes ao mercado de arte quanto à forma de sua comercialização e divulgação da arte da gravura. A Galeria pretendia ser um espaço democrático para a venda de arte de qualidade, independente das tendências estéticas dos seus artistas porém escolhidas por uma comissão de notáveis que aprovariam ou não a entrada destas obras para o catálogo de vendas do estabelecimento.
Com o sucesso inicial da empreitada, Calvino Filho inaugura, em fevereiro de 1949, o Clube dos Glifófilos, tendo sua sede social na própria Galeria. A razão da criação do Clube dos Glifófilos é a de que, no ano anterior, 1948, o PCB caiu novamente na clandestinidade, e seus representantes no Congresso perderam o mandato e as finanças do partido cairam expressivamente. Com essa medida oficial, a editora desaparece e Calvino Filho se reinventa como marchand criando a Galeria que levaria seu nome. Oficialmente seria uma galeria de arte, mas oficiosamente, também venderia livros e repassaria ao PCB parte da arrecadação, proveniente da venda dos livros e das gravuras.
POTY LAZZAROTTO: "Sem título" (Lavadeiras), 1949. Gravura água-forte, produzida especialmente para o Clube dos Glifófilos, o primeiro clube de gravuras do Brasil.
Após o breve período de sucesso do moderno curso de artes gráficas da Fundação Getúlio Vargas durante o ano de 1946, o Clube dos Glifófilos trouxe de volta ao campo artístico as discussões acerca da importância da gravura e de sua valorização como obra de arte autônoma, mas também como importante veículo de transformação cultural da sociedade, seja a partir de um viés político ou meramente artístico segundo aspiravam seus idealizadores.
Os integrantes do Clube mensalmente receberiam uma obra produzida por um grande artista ou um gravador jovem e promissor, devidamente numerada e assinada, e com os principais dados biográficos do seu autor. Gravada na própria chapa de impressão de algumas gravuras, podemos observar a menção de sua produção exclusiva para o Clube dos Glifófilos através da legenda “Tiragem de 100 exemplares numerados de 1 a 100 especialmente para o Clube dos Glifófilos – Maio de 1949”, observado na gravura de Poty Lazzarotto.
Estes sócios contribuintes pagariam uma mensalidade de R$250,00 (duzentos e cinquenta cruzeiros, também conhecido como cruzeiro antigo), que lhes daria direito a receber além da gravura, uma pasta especial para acondicioná-las, identificada com o número de inscrição do associado. O Clube seria constituído por 100 sócios, e talvez a numeração tenha alguma ligação com o fato de que os consensos internacionais em torno da boa qualidade de impressão de uma gravura água-forte recomendam o número máximo de 99 cópias. Além dos sócios pagantes, o Clube dos Glifófilos também teria associados gratuitos, chamados de aderentes, que nada pagariam, mas que também receberiam as obras produzidas mediante o pagamento individual.
Curiosamente, ao analisarmos essas gravuras perceberemos que não existe uma única obra abstrata, e que todas remetem à figuração em suas variáveis correntes artísticas, seja modernista ligada às questões sociais, ao cubismo de Picasso ou ligada à tradição acadêmica da gravura água-forte.
A arte figurativa era um ponto nevrálgico a ser defendido pelos artistas militantes do PCB, já que, para eles, se constituía num importante elemento de ligação com as raízes do povo a partir de uma temática visual em que a plasticidade se refletia através do cotidiano vivido, seja pelo trabalhador do campo ou pelo operário da fábrica.
EDGARD COGNAT: "Sem título", 1949. Gravura água-forte, produzida especialmente para o Clube dos Glifófilos, o primeiro clube de gravuras do Brasil.
O Clube encerrou suas atividades oficialmente em 1952 porém a última gravura que se tem conhecimento foi a produzida por Tomás Santa Rosa em janeiro de 1950, de um total de 9 gravuras. O seu fechamento se deu por falta de interesse apesar da exaustiva propaganda e prestígio dos artistas envolvidos em sua promoção. Segundo Carlos Oswald em seu livro de memórias Como me tornei Pintor?, a sociedade da época ainda não tinha maturidade suficiente para entender a importância da gravura como uma obra de arte autônoma.
A criação, em 1951, do Curso de Especialização da Gravura de Talho-Doce, da Água-forte e Xilografia na Escola Nacional de Belas Artes, tendo como Professor Raimundo Cela e, logo depois, Oswaldo Goeldi, conferiu à gravura brasileira o status de um nascimento moderno dentro da academia brasileira. O aparecimento de novos espaços expositivos contemporâneos, representados pela criação do Salão Nacional de Arte Moderna, dos Museus de Arte Moderna do Rio e São Paulo e da Bienal de São Paulo, será fundamental para o prestígio que a gravura brasileira irá experimentar na década de 50.
Esse texto é um pequeno resumo da minha dissertação de Mestrado em História e Crítica da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ, "Clube dos Glifófilos, o primeiro clube de gravuras do Brasil", defendida em dezembro de 2020, sendo minha orientadora a Profª Dra. Angela Ancora da Luz e como membros da banca examinadora a Profª Maria Luisa Távora – UFRJ e o Profº Dr. Mauro Trindade – UERJ. Aqueles que desejarem ler toda a dissertação, basta solicitá-la através do email opapeldaarte@gmail.com.
* Julio Reis é Mestre e Doutorando em História e Crítica da Arte pela Escola de Belas Artes da UFRJ.