O ÁLBUM 12 XILOGRAVURAS de CIRO FERNANDES

8 de Dezembro de 2025
Ciro Fernandes, pintor e xilogravador.

CIRO FERNANDES e seu ÁLBUM 12 XILOGRAVURAS -  Ciro de Uiraúna

 Nertan Macedo 


Um dia, fui visitar mestre Noza no Juazeiro do Padre Cícero. A oficina do robusto velho talhador de madeira, mãos realentadoras do céu e penúria do sertão, modeladoras de santos e pobres dos confins de dentro, dessas gentes maceradas que nunca avistaram o mar-oceano na pancada litorânea e tripulavam nuvens e naus sonhadoras e místicas no azulado dos olhos do Senhor Bom Jesus e do Santo Patriarca, devassando pela via do entendimento e do coração os mais escuros espaços de reconditos arcanos, lobregos, soturnos páramos, além, muito além das estrelas do manto de Nossa Senhora... oficina era uma casinha quase tapera, com um minúsculo quarto assobradado, minicaos, onde se amontoavam beatas e cangaceiros do imaginário Noza.

 
"Maria", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.

Foi aí que conheci um pouco da intimidade da Idade Média, o medievo bafo, o hálito do antigamente, cheiro, solidão e rude humildade de oficinas que criaram, fabricaram, forneceram coisas a Dom Quixote e aos Doze Pares de França. E talvez a Carlos V e a Felipe do Escorial. 

Porquanto madeira, couro, ou cola exalam, em qualquer parte, ou sob qualquer manha de sol intenso, idêntico bafio, peculiar e pateticamente histórico. 

Lá encontrei, desconfiadas, mudas, andrajosas, duas rapariguinhas a quem mestre Noza transmitia segredos do seu oficio imaginário. Lembrei-me então e instintivamente de uma mulher que viveu há muitos anos uma certa Joana Imaginária que esculpia nos sertões de Santa Quitéria, norte do Ceará - e foi amada-amante de Antônio Conselheiro, quando ele ainda não era o Taumaturgo Taurocéfalo; e o futuro profeta de Canudos plantou no ventre dessa Joana um bastardo que se perdeu na memória, no espaço e no tempo.

 
"Fim de forró", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.

Ciro Fernandes, imaginário da xilogravura, talha na madeira crua imagens que vão ser imagens. Ele é neto de mestre Noza, sobrinho de tio Zuza e primo em primeiro grau esse paraibanozinho de Uiraúna - desse outro diabinho escopeteiro na complicada e fina arte das talhas impressoras, o moço pernambucano Jó Oliveira, corrido e letrado da Hungría à Bulgária, pátrias de ícones e desenhos de um só negrume ou de vetustas cores.

Todo artesão é apátrida na razão direta da percepção internacional. Quero dizer: se, como criador, alguém roça a fimbria da sensibilidade humana (só aparentemente) perde as suas fronteiras nacionais, provinciais e municipais para se projetar no "oco do mundo", para além de onde Judas perdeu as botas. Quero ainda dizer (lição já repetida tantas vezes): que esse alguém que cria além das suas raias territoriais mas bebe das águas da própria cacimba e pisa descalço o próprio chão - desenraiza-se tão-somente pela generosa beleza com que a todos os homens contempla e contenta, a todas as nações e reinos gratifica, no mesmo passo (o que não constitui paradoxo algum) em que mergulha cada vez mais profundamente suas raízes no país natal, cujas lindes podem perfeitamente não ultrapassar a porteira de um curral de fazenda de gado, ou a de um bangüé de fogo aceso ou morto.

Foi Faulkner quem disse, uma vez, que só o Espirito soprando sobre a Matéria pode construir o Homem.


"A onça", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.

Bem, o que me espanta e comove nestas gravuras de Ciro Fernandes é algo extremamente simples e tão raro em nosso tempo: sua autenticidade nordestina e quanta bifidez se tem ostentado nos dias atuais em nome da autenticidade!

Ah, mundo cão, velhaco, cosmopolita, povoado de ambíguos e fraudadores de linguagens, teorias, ideias e imagens escritas, faladas, televisionadas, solertemente elaboradas (vide escultura, arquitetura, pintura) para empulhar trouxas, idiotas e basbaques que se consideram altamente sofisticados e bizarros.

Este Ciro Fernandes, não. Dele, do Jó, do velho Noza, do saudoso Vitalino de Caruaru, do Severino de Tracunhaém, não me canso, não me enfado, não me enfastio, não me esgotarei nunca. Eles são puros, sinceros. Não se desenraizaram, também não se despojaram das suas raízes, não as socaram em provetas de laboratório, não as sacrificaram ao ridículo engajamento da temática, não renegaram sua nobreza simples, sua pobreza orgulhosa.

"São Jorge", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.

Condes, barões da sua arte. Castelões da sua alquimia e dos seus longevos mistérios plenos de liames telúricos. Recordam aqueles príncipes georgianos que o eram porque na Georgia para ser príncipe bastava ser proprietário de um rebanho de carneiros -piada que, certa vez, muito aborreceu a Princesa Gourieli, née Helena Rubinstein, bravia dama multinacional de cosméticos.

Tal qual Canudos, Ciro de Uiraúna não se rendeu. Não se rendeu, como tantos que capitulam por um prato de lentilhas, à migração brasileira, uma das nossas maiores desgraças intelectuais (ainda neste ano da graça de 1978). E não entregou a rapadura porque não tem sangue de barata e sabe nutrir sua alma da seiva de combate.

Reparem nas suas gravuras: são feitas do calcinado pó da terra quente nordestina. Da consistência dos seus pedrouços disseminados em meio à solidão ardente do sol, ou amaciados aos raios dos luares da noite. Seu mundo rendeiras, cangaceiros, meninos, bichos, lobisomens - vem do fundo da sua meninice mítica na Uiraúna paraibana. Seus personagens caminham ao lado do fantasma do tio Zuza que lhe transmitiu, pelo sangue, o ofício dos mestres das corporações medievais. Está aí a alma penada de Vitalino. A de Severino de Tracunhaém. De Lampião, do Conselheiro, do Padre Cícero, de Zé Lins do Rego, de Graciliano Ramos. Também a de Suassuna e sua princesia armorial.


"Moagem", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.

Ciro é isto: continuidade que vai da Paraíba à feira nordestina de São Cristóvão, em pleno Rio de Janeiro, hoje realizada no antigo bairro imperial onde morou Pedro Segundo.

Que dignidade de artista-gravador e quanta lealdade às fontes e origens da sua tosca vida sertaneja, hein Dona Perla Sigaud?!

 

Nertan Macedo (1929-1989)
Escritor e membro da Academia Cearense de Letras