CIRO FERNANDES e seu ÁLBUM 12 XILOGRAVURAS
- Ciro de Uiraúna
Nertan Macedo
Um dia, fui visitar mestre Noza
no Juazeiro do Padre Cícero. A oficina do robusto velho talhador de madeira,
mãos realentadoras do céu e penúria do sertão, modeladoras de santos e pobres
dos confins de dentro, dessas gentes maceradas que nunca avistaram o mar-oceano
na pancada litorânea e tripulavam nuvens e naus sonhadoras e místicas no
azulado dos olhos do Senhor Bom Jesus e do Santo Patriarca, devassando pela via
do entendimento e do coração os mais escuros espaços de reconditos arcanos,
lobregos, soturnos páramos, além, muito além das estrelas do manto de Nossa Senhora...
oficina era uma casinha quase tapera, com um minúsculo quarto assobradado,
minicaos, onde se amontoavam beatas e cangaceiros do imaginário Noza.

"Maria", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Foi aí que conheci um pouco da intimidade da Idade Média, o medievo bafo, o hálito do antigamente, cheiro, solidão e rude humildade de oficinas que criaram, fabricaram, forneceram coisas a Dom Quixote e aos Doze Pares de França. E talvez a Carlos V e a Felipe do Escorial.
Porquanto madeira, couro, ou cola exalam, em qualquer parte, ou sob qualquer manha de sol intenso, idêntico bafio, peculiar e pateticamente histórico.
Lá encontrei, desconfiadas,
mudas, andrajosas, duas rapariguinhas a quem mestre Noza transmitia segredos do
seu oficio imaginário. Lembrei-me então e instintivamente de uma mulher que
viveu há muitos anos uma certa Joana Imaginária que esculpia nos sertões de
Santa Quitéria, norte do Ceará - e foi amada-amante de Antônio Conselheiro,
quando ele ainda não era o Taumaturgo Taurocéfalo; e o futuro profeta de
Canudos plantou no ventre dessa Joana um bastardo que se perdeu na memória, no
espaço e no tempo.

"Fim de forró", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Ciro Fernandes, imaginário da
xilogravura, talha na madeira crua imagens que vão ser imagens. Ele é neto de
mestre Noza, sobrinho de tio Zuza e primo em primeiro grau esse paraibanozinho
de Uiraúna - desse outro diabinho escopeteiro na complicada e fina arte das
talhas impressoras, o moço pernambucano Jó Oliveira, corrido e letrado da
Hungría à Bulgária, pátrias de ícones e desenhos de um só negrume ou de
vetustas cores.
Todo artesão é apátrida na razão
direta da percepção internacional. Quero dizer: se, como criador, alguém roça a
fimbria da sensibilidade humana (só aparentemente) perde as suas fronteiras
nacionais, provinciais e municipais para se projetar no "oco do
mundo", para além de onde Judas perdeu as botas. Quero ainda dizer (lição já
repetida tantas vezes): que esse alguém que cria além das suas raias
territoriais mas bebe das águas da própria cacimba e pisa descalço o próprio
chão - desenraiza-se tão-somente pela generosa beleza com que a todos os homens
contempla e contenta, a todas as nações e reinos gratifica, no mesmo passo (o
que não constitui paradoxo algum) em que mergulha cada vez mais profundamente
suas raízes no país natal, cujas lindes podem perfeitamente não ultrapassar a
porteira de um curral de fazenda de gado, ou a de um bangüé de fogo aceso ou
morto.
Foi Faulkner quem disse, uma
vez, que só o Espirito soprando sobre a Matéria pode construir o Homem.

"A onça", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Bem, o que me espanta e comove
nestas gravuras de Ciro Fernandes é algo extremamente simples e tão raro em
nosso tempo: sua autenticidade nordestina e quanta bifidez se tem ostentado nos
dias atuais em nome da autenticidade!
Ah, mundo cão, velhaco,
cosmopolita, povoado de ambíguos e fraudadores de linguagens, teorias, ideias e
imagens escritas, faladas, televisionadas, solertemente elaboradas (vide
escultura, arquitetura, pintura) para empulhar trouxas, idiotas e basbaques que
se consideram altamente sofisticados e bizarros.
Este Ciro Fernandes, não. Dele,
do Jó, do velho Noza, do saudoso Vitalino de Caruaru, do Severino de
Tracunhaém, não me canso, não me enfado, não me enfastio, não me esgotarei
nunca. Eles são puros, sinceros. Não se desenraizaram, também não se despojaram
das suas raízes, não as socaram em provetas de laboratório, não as sacrificaram
ao ridículo engajamento da temática, não renegaram sua nobreza simples, sua
pobreza orgulhosa.

"São Jorge", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Condes, barões da sua arte.
Castelões da sua alquimia e dos seus longevos mistérios plenos de liames
telúricos. Recordam aqueles príncipes georgianos que o eram porque na Georgia
para ser príncipe bastava ser proprietário de um rebanho de carneiros -piada
que, certa vez, muito aborreceu a Princesa Gourieli, née Helena Rubinstein,
bravia dama multinacional de cosméticos.
Tal qual Canudos, Ciro de
Uiraúna não se rendeu. Não se rendeu, como tantos que capitulam por um prato de
lentilhas, à migração brasileira, uma das nossas maiores desgraças intelectuais
(ainda neste ano da graça de 1978). E não entregou a rapadura porque não tem
sangue de barata e sabe nutrir sua alma da seiva de combate.
Reparem nas suas gravuras: são
feitas do calcinado pó da terra quente nordestina. Da consistência dos seus
pedrouços disseminados em meio à solidão ardente do sol, ou amaciados aos raios
dos luares da noite. Seu mundo rendeiras, cangaceiros, meninos, bichos,
lobisomens - vem do fundo da sua meninice mítica na Uiraúna paraibana. Seus
personagens caminham ao lado do fantasma do tio Zuza que lhe transmitiu, pelo
sangue, o ofício dos mestres das corporações medievais. Está aí a alma penada
de Vitalino. A de Severino de Tracunhaém. De Lampião, do Conselheiro, do Padre
Cícero, de Zé Lins do Rego, de Graciliano Ramos. Também a de Suassuna e sua
princesia armorial.

"Moagem", xilogravura de Ciro Fernandes, 1978.
Ciro é isto: continuidade que
vai da Paraíba à feira nordestina de São Cristóvão, em pleno Rio de Janeiro,
hoje realizada no antigo bairro imperial onde morou Pedro Segundo.
Que dignidade de
artista-gravador e quanta lealdade às fontes e origens da sua tosca vida
sertaneja, hein Dona Perla Sigaud?!
Nertan Macedo (1929-1989)
Escritor e membro da Academia Cearense de Letras